domingo, 23 de junho de 2013
quinta-feira, 6 de junho de 2013
MEMÓRIAS DE UM CAVALCANTI
Um patriarca da família Cavalcanti mereceu de Gilberto Freire a edição de um livro. Trata-se da obra “O Velho Félix e suas Memórias de um Cavalcanti”, publicada pela Livraria José Olympio Editora em 1959. Félix Cavalcanti viveu em Recife no século XIX, tendo presenciado várias agitações políticas de sua época, deixando-as quase todas registradas em um diário. Daí porque a importância sociológica da obra.
Era monarquista, mas não se envolvia em política partidária. Para ele a monarquia simbolizava o equilíbrio, a ordem, a segurança e a estabilidade. No prefácio da referida obra, comenta Lourival Fontes: “A Monarquia continuava como o equilíbrio dos poderes, o respeito da lei e da justiça, o símbolo das causas e dos direitos humanos. Nela não há tiranos para exercer o despotismo nem eleições manipuladas com audácia e dinheiro. Porque era uma utopia, as perspectivas da República o apavoravam, as degenerações e balbúrdias o deprimiam, os atentados, violências e terrores o petrificavam”. (op. cit. pp. XXIII).
Os argumentos que Félix Cavalcanti usava contra a república eram muito fortes, perguntando:- “quem nos garante que o Brasil se torne uma Suíça grande e não uma outra Venezuela?” - ”O nascimento de um herdeiro ao trono é garantia contra a reprodução de freqüentes eleições para presidentes da república; eleições que não passam de comédias, e são às vezes calamidades”...- “Num país constitucional, a ascensão de um herdeiro ao trono quase não importa; quem distribui justiça são os juízes; quem legisla são os representantes da nação; porque quem governa são os ministros; o soberano, porém, equilibra os vários poderes nas suas relações uns com os outros e assegura a continuidade e a perpetuidade desse equilíbrio político”. E noutra oportunidade: “Esta Utopia, que os tontos de Paris apregoam com o nome de república, há de ser sempre o que tem sido até hoje. Uma utopia: nada mais”.
Quando a Monarquia caiu, ele lamentou muito. É importante, a este respeito, o depoimento do próprio Gilberto Freire: “Posso, aliás, adiantar, nesta introdução às memórias de Félix Cavalcanti, que das autobiografias que já recolhi de brasileiros de várias profissões e de diversas regiões, homens e senhoras maiores de 50 anos, como respostas a um inquérito organizado para servir de lastro a trabalho próximo – Ordem e Progresso – sobre a paisagem social dos últimos anos da Monarquia e do começo da República no Brasil, grande número de pessoas, não revelando sebastianismo nenhum, nem desejo, mesmo vago, de restauração do Império, lamentam tanto quanto o velho Félix Cavalcanti a substituição da Monarquia pela República em 1889. Donde se conclui que a Monarquia ou o Rei, ou melhor, o Imperador, melhor ainda, Dom Pedro II, tem sido e ainda é um defunto chorado no Brasil. Chorado por juízes, desembargadores, professores, homens do povo, advogados, padres, funcionários públicos, médicos, senhoras ilustres. Choradíssimo por Félix Cavalcanti de Albuquerque Melo, obscuro contemporâneo do monarca e que não tendo recebido de Sua Majestade nem sequer pretendido do seu augusto governo, nenhum favor especial, nem nenhum título ou crachá, nem nenhuma comenda, foi apenas um provinciano de tendências conservadoras e de feitio aristocrático que se identificou com a causa monárquica por gosto e por princípio” (pág. XLIV).
Gilberto Freire comenta em sua Introdução no referido livro que Félix Cavalcanti era um remanescente da aristocracia rural vindo para a cidade. Tratava-se de um patriarca “com enorme família, escravos velhos, crias dentro de casa; com imensa mobília de jacarandá maciço, guarda-louça e aparadores de amarelo, camas de canduru, santuário, armário, baús, mesa de jantar para vinte pessoas, a coleção inteira dos romances de Alexandre Dumas, a História Universal de César Cantù, os romances de Eugênio Sue, o retrato do Visconde do Rio Branco” (op. cit. pág. XXVIII). Destaca ainda o fato do velho Félix haver se mudado constantemente de residência quando foi morar em Recife, trocando “de casa, de rua, de bairro e um pouco de cidade. De idéias, muito pouco. E muito pouco de hábitos, de sentimentos, de preconceitos. Em muita coisa conservou-se no Recife do século XIX o aristocrata do engenho do Sul de Pernambuco; o Cavalcanti de Albuquerque Melo de outros tempos; o matuto fidalgo desconfiado do Povo, da Cidade, da Democracia, da Abolição, da República”.
Apesar dos Cavalcanti desfrutarem de grande prestígio e poder em Recife, assenhoreados dos mais importantes cargos políticos, administrativos e judiciários, Félix Cavalcanti mantinha-se completamente alheio a tudo e levando sua pacata vida sem lutar por honrarias e cargos. João Maurício Cavalcante da Rocha Wanderley era juiz de Limoeiro; Álvaro Barbalho Ucha Cavalcanti, de Rio Formoso; Manuel de Holanda Cavalcanti, de Pau d’Alho; Francisco Xavier Cavalcanti era chefe da Repartição do Selo, etc. De tal sorte que suscitaram várias violências contra a família, talvez por causa da inveja que causavam: “Daí as violências contra Cavalcantis e outros aristocratas de engenhos praticadas por Chichorro da Gama quando a Presidência da Província passou dos oligarcas para os liberais, seus adversários terríveis. “A influência da família Cavalcanti não era um fato de 1835, mas datava de tempos remotos; que essa influência não era obra do poder ou da revolução, mas procedia da “natureza das coisas”; que era influência que sempre teve uma família numerosa, antiga e rica e “cujos membros sempre figuraram nas posições sociais mais vantajosas; na primeira Legislatura de 1824, cinco membros desta família foram eleitos deputados; na segunda e terceira legislaturas seis Cavalcanti obtiveram essa honra popular; ...E ainda: “Esses Cavalcantis antes da nossa emancipação política já figuravam como capitães-mores, tenentes-coronéis e oficiais de ordenança e milícia e em todos os cargos da governança; os engenhos que a maior parte deles tem foram havidos por herança...” (op. cit.).
(Chichorro da Gama)
Félix Cavalcanti de Albuquerque descendia das mais velhas estirpes do Sul de Pernambuco, com parentesco nas diversas famílias importantes da região, os Melo, os Barros Wanderley, os Bezerra, etc. Destacou-se por ter sido um homem capaz, honrado, vivendo do trabalho honesto, sem nunca ter recorrido a favores políticos para si ou para os seus, nunca obteve um cargo público, simplesmente porque não queria, embora sua família estivesse em ruína financeira. Apesar de provir do meio rural era dotado de alguma instrução, diferentemente de seus parentes, os quais, segundo Gilberto Freire, eram o exemplo de família rica e pouco instruída. Era homem de “muita leitura”: havia lido grande número de livros, revistas, almanaques, até mesmo jornais em que chegou a colaborar. Dentre os livros que possuía se destaca uma obra de Cesare Cantu, católico liberal muito conhecido na Itália por haver publicado uma História Universal em 35 volumes. Era a época em que se discutiam muito sobre a Igreja, o poder civil dos papas, era a época de Pio IX e a luta pelos direitos da Igreja.
(Cesare Cantu)
O relato das memórias desse Cavalcanti mostra um fato social hoje estudado por vários sociólogos: a crescente urbanização do Brasil e em conseqüência a "desruralização" da antiga aristocracia feudal ocorridos a partir de meados do século XIX. Félix Cavalcanti e seus irmãos perderam o engenho com a morte do pai e foram forçados a mudar-se para a cidade a procura de melhores recursos para suas famílias, aliás muito numerosas e de muitos filhos. Em Recife, consegue se manter com um modesto emprego na Santa Casa: “De Félix se pode dizer sem exagero que, dentro da sua modéstia de empregado da Santa Casa, conseguiu conservar, além da nobreza da família, a chamada nobreza moral tão dificilmente preservada em meios urbanos por indivíduos vindos de áreas rurais”.
Assim, Félix Cavalcanti é modelo de um grupo de pessoas que tiveram que abandonar a vida rural pela da cidade, gente que se havia enobrecido pela atividade campestre, com semelhança ao feudalismo europeu, mas que repentinamente se acharam empobrecidas e se viram forçadas a enfrentar a dura vida da cidade.
O velho Félix também possuía muita bondade
Em suas memórias Félix Cavalcanti conta como era sua vida particular e de família. Registrou que quando passava pelas ruas de Recife e ouvia gritos de escravos pedindo ajuda, às vezes maltratados por algum senhor desalmado, ele imediatamente interferia, pedia misericórdia para o pobre coitado. Era comum os senhores de escravos atenderem a tais pedidos feitos por “gente distinta”, como o era Félix Cavalcanti.
Em outra oportunidade, ficou bastante sensibilizado com o pedido de ajuda que alguém lhe fez, e o velho Félix viu-se na obrigação de fazer uma coisa de que não gostava, mas o fez para ajudar alguém: teve que pedir a um filho interferência para conseguir emprego para uma pessoa. O caso marcou tanto sua vida que ele dedica várias páginas de suas memórias o contando.
Um dos momentos em que ele foi mais chamado a praticar suas virtudes foi por ocasião da peste do “cholera morbus”, que vitimou a cidade de Recife a partir de janeiro de 1854. Segundo Félix Cavalcanti, “A morte ameaçando a todos, os cadáveres ficavam insepultos, a cidade entregue à desolação”. E mais adiante: “Via-se com uma mistura de dor e de indiferença morrer o amigo, o pai, o filho e o esposo, e a sensibilidade já adormecida não manifestava o pesar intenso que a todos devia dilacerar”. Houve dia em que falecerem 120, mortandade espantosa numa cidade que contava na época com 6 mil habitantes.
E Félix Cavalcanti se redobrava em cuidados, pois trabalhava na Santa Casa de Misericórdia, onde os moribundos eram atendidos e faleciam. Certa feita deixaram com ele uma mulher dizendo que havia morrido e que providenciasse o enterro. Logo ele verificou que a mulher ainda vivia, conseguiu reanimá-la e, medicando-a, salvou-a.
Eis aí mais um exemplo de bondade que precisamos conhecer e praticar. O Sr. Batista, o principal personagem homenageado neste blog, não chegou a tanto, mas certamente se estivesse numa posição semelhante à do velho Félix teria feito o mesmo, pois esta bondade é própria do sentimento cristão que em nós nasce com o batismo e cresce com a prática dos chamados "conselhos evangélicos", deixados por Nosso Senhor Jesus Cristo para que todo cristão possa atingir a perfeição na prática do Bem. Há algo de comum nestes dois personagens, que é a prática da bondade, esta bondade natural tão característica de nosso sertanejo.
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