quinta-feira, 29 de maio de 2025

UM MEDIEVAL VISITA O SÉCULO XXI

 

         








O pequeno Rivière era muito meditativo, e por amar muito a Religião e a Pátria sonhava frequentemente com as duas. Consternava-lhe ver quão decadentes viviam as pessoas: sua época, o século XIII, já era profuso em costumes e ideias revolucionárias. Na cidade em que morava as pessoas muito comumente procuravam deleitar-se com os prazeres da vida, e tudo faziam para evitar qualquer sacrifício, dureza, cruz, sofrimento. E assim, muitos riam folgadamente, passeavam despreocupadamente, viajavam a procura de aventuras e novidades e, sobretudo os jovens, tinham como objetivo de suas vidas não mais o heroísmo e sim o romantismo amoroso.

E o jovem pensava: aonde vai dar tudo isto? “Se continuarem assim – dizia -, abandonando o dever pela busca do prazer, que restará de nossa juventude? Que será de nosso futuro?”

O sacrifício, antes tido como decorrência natural do pecado original, agora passa a ser desprezado a qualquer custo: deste modo, as roupas, as modas, os costumes, as preferências de todos, tudo enfim, tendia a caminhar para a gostosura da vida. E o garoto franzia o seu semblante, dia e noite, presenciando cenas, ouvindo conversas, vendo fatos que contradiziam, embora com pouca ênfase em alguns casos, todos os princípios cristãos para os quais houvera nascido e criado.

E foi assim que, certa noite, Rivière sonhou. Era um sonho bem diferente dos que costumava ter. Foi algo muito inusitado para ele. Em seu sonho ele se encontrava num mundo completamente diferente. Achava-se num futuro bem distante de seu tempo, quase oito séculos após. Em sua época já se falava que haveria um futuro cheio de paz e tranquilidade. Mas, na realidade, o que ele presenciava de paz em seu sonho era completamente diferente do que as pessoas imaginavam em sua época. Ele ficou muito chocado com o que viu:

- Que lugar estranho! – pensava. Para que tanto rebuliço? E quantas pessoas juntas! Quanta multidão a caminhar de um lado para o outro! Por que será que estão assim reunidos andando ao léu sem destino? Não vejo ninguém chamando-os para alguma batalha, nem tampouco para alguma peregrinação religiosa, e no entanto eles andam com pressa, embora sem rumo e sem um objetivo definido...

Repentinamente foi abordado por alguém que o observava:

- Olá, rapaz! Não está sentindo calor? Ou está vindo do frio?

- Calor? Que calor? Nós geralmente sentimos muito calor quando estamos empenhados numa batalha – sentimos o calor da luta. A que calor está se referindo?

- O calor do tempo, ora essa! Não ver que o sol está a pino? Por que não tira estas roupas pesadas? Refresque-se!

- Refrescar-me? Em minha terra nós nos refrescamos quando estamos cansados após dura batalha ou renhido trabalho, mas neste caso entramos em casa e nos recostamos a um leito.

- Não me diga que em sua terra as pessoas usam estas roupas pesadonas em pleno verão, suando deste jeito... é verdade? Se for assim, de que terra você veio?

- Olhe, amigo, antes do desconforto do meu corpo está a paz de minha alma, e porque a prezo muito é que procuro vestir-me dignamente; quanto ao corpo, porém, não é verdade que estou suando mais do que o senhor, nem tampouco sentindo mais calor...

- Pode chamar-me de você mesmo, pois eu não sou senhor. Quero ver você provar o que disse: como posso estar suando ou sentindo mais calor que você se uso roupa leve e fina?

- É simples: o calor não vem diretamente para o meu corpo, pois o mesmo está protegido pela roupa. Quanto ao senhor, verifique que nos lugares onde a roupa não cobre, ou protege menos, o suor é mais intenso. Se quer um exemplo melhor, veja aquele palacete quadrado ali defronte, onde várias pessoas estão vestidas apenas com alguns trapos e sendo servidas por alguns lacaios muito bem vestidos. Veja... ali em frente, senhor.

- Já disse que não sou nenhum senhor. Chame-me apenas de você. Estava se referindo àquele hotel quando mencionou “palacete quadrado”? As pessoas ali que você diz usarem trapos nós chamamos de turistas e o que denomina de “lacaios” nada mais são do que os garçons que os estão servindo.

- Turistas? Garçons? O que vem a ser isso?

- Ah, que ignorância! Turistas são estas pessoas que vivem viajando e se hospedando em hotéis, isto é, hospedarias, com piscinas e outras diversões. E garçons são estes homens que lhe servem bebidas e comidas enquanto se divertem. Vamos lá, que quer dizer sobre o calor que estão passando ali?

- Não importa como são chamados, pois, na realidade trata-se de lacaios servindo a seus senhores. Veja que os chamados “garçons” estão todos bem vestidos, com roupas “pesadas” como falou, alguns até de gravatas, enquanto que os “turistas” estão vestidos apenas com alguns trapos de panos. No entanto, não se vê um só garçom com calor e suando, enquanto entre os turistas há alguns que até estão se abanando de tanto calor.

- Nunca tinha notado isso. Como se explica?

- É que o calor vem direto para o corpo dos mal vestidos, que estão sem a proteção das roupas, enquanto que os garçons têm o corpo protegido pela roupa e sofrem menos os efeitos do tempo. Afinal, como se chama o senhor?

- Por que teima em chamar-me de senhor?  Veja que não sou tão velho assim. Para nós o termo senhor significa velhice, decadência, enquanto “você” é um tratamento mais igualitário e denota juventude. Deixemos isso de lado. Diga-me de onde veio e seu nome.

- Meu nome é Rivière: como vê sou jovem ainda, mas mesmo assim já estou me preparando para ser armado cavaleiro pelo meu senhor, o grande duque de Lyon. Venho sendo adestrado há bastante tempo pelo duque. Por enquanto estou sendo apenas seu pajem, mas ele me prometeu...

Rivière foi interrompido por uma estrepitosa gargalhada. Após breve silêncio, o estranho falou:

- Pois meu nome é Estrofe do Pé Quadrado e tudo o que você está dizendo bem demonstra sua insanidade mental. É pena, tão jovem e já um tanto desmiolado...

- Ah,é? Pois fale-me um pouco do senhor: quem é, de onde veio, o que faz aqui e o que pretende na vida em seu futuro.

- Apesar de não gostar que me chame de senhor, pois isto me aborrece, vou lhe falar um pouco de minha pessoa. Como disse, meu nome é Estrofe do Pé Quadrado, um nome estranho realmente mas muito do agrado de meu pai, que era poeta: como nasci aleijado deste pé esquerdo, ele por ironia e irreverência colocou-me tal nome. Hoje em dia, é bom que saiba, as pessoas usam muito de ironia e irreverência.

- Que horror! Ironia e irreverência – que absurdo!

- Por que se espanta? Saiba que vivemos numa época em que tudo caminha para a irreverência. E a ironia também está muito em voga. Como é lá na sua terra?

- Pois em minha terra, ou em meu tempo, os nomes das pessoas são postos conforme determinadas tradições religiosas ou de família, geralmente em homenagem a santos nossos protetores. Ao contrário, nós primamos pela reverência e respeito ás pessoas. Respeitamos muito a dignidade da pessoa humana. Por isso o tenho chamado de senhor.

- Pelo que vejo você não é deste mundo: onde nasceu? Em que época?

- Como já disse, sou de Lyon, França. Nasci em 1294, portanto, no final da Idade Média.

- Vou acreditar no que diz, somente para ver até onde quer chegar. Sendo assim, encontramo-nos, eu e você, nesta movimentadíssima avenida de Nova Yorque, conversando sobre nossas terras ou nossas eras históricas, sendo eu deste século XXI e você da Idade Média – uma diferença de quase oito séculos. Na realidade, estou aqui de passagem.

- Turista também?

- Um pouco de turista, mas muito mais de comerciante, pois venho sempre aqui fazer compras.

- Nasceu em que país?

- Sou brasileiro, nasci em São Paulo. Aqui estou a negócios, e você?

- Não sei como cheguei até aqui. Tudo é muito estranho, estou confuso e perplexo. Não entendo certas coisas que estou presenciando. Por exemplo, o que são aqueles bólides luminosos andando sobre caminhos negros lá embaixo?

- São veículos, espécie de carruagens de seu tempo, mas movidos por si mesmo, que chamamos de automóveis. As estradas negras chamamos de auto-estradas, e a cor escura é devida ao breu ou asfalto de que são feitas.

- E naquelas ruas,  para que tantas cordas esticadas naqueles postes?

- São fios elétricos. Através deles corre energia elétrica para acender as luzes e mover as máquinas e aparelhos elétricos em geral.

- E por que as pessoas andam assim tão confusamente pelas ruas? Veja quanta multidão andando ao léu sem destino... quanta balbúrdia, e como se vestem de maneira ridícula!

- As pessoas que você vê estão andando pelas calçadas, pois se andarem pelas ruas podem ser atropeladas pelos carros. Quanto às roupas,  não vejo nada de ridículo nas que as pessoas estão vestidas hoje em dia: ridículo está você aí com este jaquetão grosseiro!  As roupas modernas são leves, alegres, poucas pra não fazer calor, a fim de que as pessoas se sintam mais á vontade e livres, acabando com aquela ideia de sufoco que havia antigamente. O importante é a liberdade, que começa pelos movimentos do corpo.

- Mesmo que esta liberdade leve a pessoa para a imoralidade?

- Imoralidade? Nós não sabemos mais o que é isso: há muito tempo que não existe mais moral em nosso mundo.

- Não sei como pode haver uma sociedade onde não haja respeito pela moral. Como é, então, o relacionamento entre as pessoas? Há dignidade? Existem leis superiores para serem cumpridas e manter a paz? Há também alguns costumes que levem as pessoas a um mútuo respeito? Tanta liberdade não acaba suprimindo alguns direitos como, por exemplo, o da privacidade?

- Chega de tanta pergunta. Estou gostando agora mais da conversa porque esqueceu-se de chamar-me de senhor. Vamos em frente. Nós baseamos nossa convivência social, meu rapaz, apenas na luta pela sobrevivência. Ou então, pelo dinheiro, ou pela posição social. Somente isto faz com que as pessoas andem se respeitando uns aos outros. Por causa da posição social respeita-se o delegado, o juiz, o prefeito, o governador; por causa do dinheiro respeita-se o gerente de banco, o financista e o homem de negócios, como o comerciante ou o industrial. A dignidade só existe para quem tem dinheiro e posição social. E todos assim gozam de liberdade, vivendo somente para este fim: a luta pela sobrevivência.

- Ah! Agora entendo porque não quer que o chame de senhor. Neste seu mundo quem não possui dinheiro e posição social torna-se um pária. Não há respeito pelos pobres. Onde está a dignidade do homem como filho de Deus? Meu Deus, que horror!

- É o século XXI, meu chapa! Nós vivemos hoje a lei da selva: não a selva da floresta, mas a selva de pedra das grandes cidades, onde tudo converge para esta luta de que lhe falei. Quem não vencer neste mundo fará parte da escória e para este nossa sociedade tem reservado apenas alguns. cortiços, certas favelas, um submundo terrível, pois não há outra saída. Quanto aos demais, os que conseguirem se superar e vencer na vida, gozarão felizes a doçura do “bom viver”, com automóveis e aviões de luxo, viagens turísticas, luxuosos hotéis de veraneio e clubes com piscinas super-confortáveis. É a vida, meu caro! Alguns têm que penar para outros gozar!

- Como é triste teu mundo.

- Triste? Você está louco! Dê uma olhada nestas ruas e veja quantas casas de diversões e entretenimento irá encontrar. Aposto em que em sua terra, ou em seu tempo, nada disso havia.

- Não vejo tais diversões como fruto de uma verdadeira alegria. Não acredito que depois de tanto frenesi as pessoas não se sintam com a consciência pesada.

- Como é que a consciência pode ficar pesada?

- Pode ficar pesada e doer, sabendo-se que o resto do mundo pena muitas misérias e  há muita injustiças a corrigir, enquanto se diverte e se goza a vida de uma forma assim tão despreocupadamente.

- Não, meu caro, nós não temos problemas de consciência. Encontramos na vida moderna vários recursos com que possamos abafar a consciência. Procuramos sempre a fuga da dor, principalmente disso que se chama “dor da consciência”.

- Como é feito isso?

- Simplesmente não nos preocupamos com os outros! É cada um por si. E agindo assim não há como a consciência possa doer, ela parece nem sequer estar viva.

- Entendo. Gostaria de deixar patente, no entanto, que isto não lhes traz uma autêntica alegria. Não pode ser autêntica uma alegria que procura abafar a consciência ao ponto de deixá-la quase morta. A verdadeira alegria está no interior de cada um, onde deve morar com toda a força nossa consciência. Só pode ser verdadeira e autêntica esta alegria quando, ao nos divertirmos, a justiça, a paz e a união campearem ao nosso redor. Se o homem se diverte e goza, mas seus irmãos tudo sofrem, esta alegria é falsa. Mais ainda se a consciência não desperta e não lhe chama a atenção para a realidade que o cerca.

De repente, ambos percebem que há uma grande discussão numa rua onde se aglomerava pequena multidão. Perguntaram a um transeunte, tendo o mesmo dito que se tratava de um problema corriqueiro, uma briga por causa do lugar na fila.

- Como é isso? – pergunta Rivière – uma briga por causa de lugar na fila?

- Sim, isso ocorre com frequência hoje em dia. O sujeito está numa fila qualquer, ou para fazer uma compra, ou para ser atendido num banco, ou mesmo para embarcar num transporte, e de repente alguém “fura” a fila, isto é, passa na frente do outro. E daí surge a briga, pois o que está na frente não suporta ver o outro lhe passar na frente. É assim também na sociedade, de um modo geral, pois ninguém suporta ver outro passar na sua frente, e muita gente briga por causa disso.

- Mas, brigar por causa de um lugar numa fila?

- Sim, é um direito de quem estar na fila ter seu lugar respeitado – se alguém entra na frente está ferindo um direito...

- Oh mas que direito mais bobo? Como é que se briga por causa de uma coisa tão banal?

- No seu tempo ninguém brigava na fila?

- Não era costume haver filas no meu tempo, a não ser para se receber a Sagrada Comunhão, na Santa Missa. E aí, o normal é o contrário: as pessoas fazem questão de ceder seu lugar a outras.  Trata-se de um direito tão secundário, tão pequeno, que a gente pode ceder a outro sem qualquer dificuldade. Aliás, aprendemos que ser educado consiste exatamente em ceder alguns pequenos direitos nossos a outras pessoas. Se causam incômodos é para que nos acostumemos com eles.

- Já vi que você é um filósofo. Mas nosso mundo não vive mais de filosofia. Voltando ao assunto anterior, diga-me, como é que as pessoas se divertiam em seu tempo?

- Era algo muito diferente do que chamam hoje de diversão. Tínhamos naquele tempo cavalgadas, caçadas, jogos de armas, todo e qualquer passatempo era feito para aperfeiçoar o caráter das pessoas. Tudo era muito honesto e tão natural que a alegria se externava espontaneamente.

- Dir-lhe-ei o mesmo: como poderia ser verdadeira esta alegria em seu tempo se haviam guerras, injustiças praticadas pelos nobres, violência contra os pobres, etc?

- Era verdadeira nossa alegria porque a paz campeava em toda a sociedade e a justiça era aplicada em todo o corpo social. Haviam temporários rompimentos de paz, haviam alguns princípios de justiça feridos, mas logo, logo, eram corrigidos e reparados, pois haviam mecanismos sociais para reparar todos estes males, que sempre ocorrem entre os homens. Enquanto seu mundo é voltado para dentro de cada um, completamente egoísta, sem pensar senão no gozo e no prazer pessoal, o nosso, pelo contrário, tinha filosofia de vida completamente contrária: praticamos a caridade, amamos ao próximo como a nós mesmos e por amor a Deus, vivemos da abnegação e do sacrifício, temos cavaleiros que vivem para a proteção dos mais fracos, os pobres, os órfãos e as viúvas, nos preocupamos mais com a felicidade dos outros do que com a nossa. E isto nos torna mais felizes ainda.

- Pode ser verdade, mas não acredito no que diz. Não acreditamos, homens do século XXI, mais em ninguém. Para nós todos os homens são egoístas, interesseiros e ladrões. Todos são filhos do pecado e aqui pecam, alguns secretamente, os hipócritas, e outros abertamente, os sinceros. Não acreditamos mais em honestidade, em abnegação desinteressada, coisas do tipo amor ao próximo, não acreditamos mais em virgindade, etc. Pergunte por aí e não vai encontrar mais nenhum rapaz ou moça que saiba o que é castidade.

- Volto a repetir: como é triste o teu mundo! Nunca imaginaríamos que a busca desenfreada do prazer levasse o homem a tal decadência.

- Pois é: assim como não acreditamos no homem de nosso tempo, também não acreditamos no do seu. Acho que não é verdade que as pessoas de sua época eram abnegadas, desinteressadas, como dissestes. Pelo contrário, acho que eram todas interesseiras, egoístas e exploradoras umas das outras. Foi por causa delas que chegamos ao grau de miséria humana ainda existente no mundo atual.

- Seria impossível a construção da Civilização Cristã, palpitante na época medieval, sem que houvessem homens assim como lhe falei. Veja as catedrais góticas: quais interesses egoístas levariam os homens a construí-las? Veja as cruzadas à Terra Santa: que interesses pessoais e egoísticos levariam os homens a enfrentar uma guerra tão longínqua, sem qualquer objetivo expansionista ou de riquezas? Veja também os mosteiros, construídos em quantidade imensa: quais interesses egoístas em construir locais de oração, onde alguns se enclausuravam durante toda a vida, no mais completo recolhimento? E isto foi, meu caro senhor, o ponto alto da Idade Média.

- Já ouvi falar de algo assim, mas acho que tudo não passa de lendas.

- Então leia os compêndios de História, pesquise, procure conhecer o  período histórico de que falamos. O senhor precisa vencer sua descrença, e acreditar pelo menos na História de seus antepassados, que não são lendas, mas fatos que ocorreram em locais determinados com pessoas reais, e estão devidamente documentados. Além do mais, tanto as catedrais como os mosteiros e outros monumentos estão ainda de pé para atestar perante as gerações futuras  o que foi a Idade Média na alma de nosso povo.

- Por que continua me chamando de senhor?

- Porque assim o manda o respeito que tenho por sua dignidade, de ser dono de si, de deter o livre arbítrio e ser livre como deve ser todo filho de Deus. Nós nos chamamos de senhor por causa disso, e o senhor por que me chama de você o tempo todo?

- Porque somos todos iguais e este tratamento nos nivela, não dar a ideia de diferença e desigualdade. Nele não há destaque, não há distinção. Você é qualquer um, é igual a outro qualquer...

- Mas, não é verdade. Nós não somos qualquer um: somos filhos de Deus e detentores da dignidade própria desta condição. Além do mais, não somos iguais, somos completamente diferente e desiguais uns dos outros. Por isso, é necessário que sejamos tratados de forma diferente.

 

·                     *                      *                      *                      *                       *

 

 

 

Os sinos tocam pausadamente. As badaladas vão se sucedendo harmoniosamente, alternando sons graves e agudos de diversas igrejas. “Não, não pode ser – pensa Rivière – estes sinos não podem estar tocando no meio desta babilônica cidade. Estes toques me fazem lembrar meu mundo, minha cidade, minha querida Idade Média do século XIII e não no inferno desta babel”.

Sim, era verdade, os sinos da catedral e das outras igrejas de Lyon estavam tangendo. Logo, Rivière percebeu que seu sonho era um pesadelo. Levantou-se lépido da cama, pois não queria chegar atrasado à Santa Missa. Além do mais, o duque o estava esperando como sempre, e dormira além do normal. Ao sair, porém, na rua, ouviu certo murmúrio na praça. Eram comuns desde algum tempo aquelas azáfamas de vendedores que vinham de outras cidades. Um deles oferecia livros romanescos da cavalaria decadente: “O cavaleiro que salvou a princesa da prisão do castelo!” – gritava oferecendo seus cordéis. Era o título da obra. Alguns compravam, embora poucos soubessem ler.

Rivière vendo tudo isso, considerou pensativo:

- E pensar que tudo começou por aí. Estou presenciando o início do processo revolucionário em tudo o que se passa na minha cidade, cujo apogeu acabo de contemplar num terrível sonho que tive.

Soube de notícias do movimento renascentista que já se iniciara, uma tentativa de restaurar o mundo pagão depois que os grandes santos e doutores da Igreja haviam sepultado no pó da História aquelas velhas filosofias de vida que tantas misérias haviam produzido na humanidade antiga. Depois que a Igreja havia extirpado a escravidão, depois que as ciências, as artes, a cultura de modo geral começavam a tomar um impulso cristão e sadio, depois, principalmente, que predominava na sociedade católica um salutar convívio social e surgiam estudos para equacionar problemas seculares, os homens então começaram a querer retornar ao mundo romano-helênico e outros já decaídos.

E, aproveitando a ocasião, rezou algumas ladainhas e rosários pelo homem do século XXI. Pois, que solução poderia dar para problemas de tais magnitudes? Será que eles acreditariam, se lhes dissesse que estavam caminhando para aquela confusão vista em sonhos em época tão distante?

E o homem do século XXI? Seria ele capaz de sonhar como seria o futuro da humanidade, sete ou oito séculos após tanta decadência?

 

 (Extraído de "Choque de mentalidades" - págs. 136/142 - obra que contém contos inéditos de minha autoria sob temas contrarrevolucionários)

terça-feira, 20 de maio de 2025

COMO SERIA HOJE UM REGIME COMUNISTA?

 


Desde que surgiu o primeiro regime dito comunista, na Rússia, em 1917, ficou arraigado na opinião pública de que o mesmo se constitui no completo domínio do Estado sobre toda a sociedade. As denominações podem variar, como, por exemplo, socialismo de estado, capitalismo de estado, república sindicalista, etc. Mas, no fundo, trata-se do mesmo sistema em que o Estado se arroga o direito de controlar completamente a vida dos cidadãos. Deste modo, não há muita diferença entre socialismo, comunismo, nazismo e fascismo, pois todos estes regimes têm a mesma característica de impor o poder estatal sobre toda a sociedade. 

É nesse sentido que diz-se hoje que estamos vivendo num regime de “comunismo difuso”, isto é, não é um regime de partido político que domina o poder estatal, mas onde as leis nos conduzem a tal preponderância. E não é só no Brasil, isso ocorre em todo o mundo. Todos os Estados modernos existem com legislações controladoras do Estado sobre a sociedade. Foi nesse sentido que Nossa Senhora disse em Fátima: “A Rússia espalhará seus erros pelo mundo”. Em 1917 a Rússia não representava nada perante o mundo, mas Nossa Senhora já previra o que ocorreria futuramente quando as nações copiassem suas leis nesse principio do poder estatal. Não quer dizer que o Estado não deva ter certo controle, mas a forma que se faz hoje em dia, dando ao Estado poderes absolutos sobre todo o corpo social, esmagando e sufocando todas as outras organizações da sociedade, torna-o ditatorial e ilegítimo.

E qual é a forma correta do Estado gerir a sociedade? Trata-se de usar um princípio defendido pela Igreja, através de vários documentos dos Papas, que chama-se “princípio de subsidiariedade”. Isso quer dizer o quê? Quer dizer que o Estado dirige, orienta, legisla, mas respeitando toda a gama de sociedades que existem abaixo dele, sem sufocar seus poderes. E este sistema dirigista estatal já consta em toda constituição moderna. Por exemplo, lá se diz que “compete ao Estado dar saúde e educação a todos os cidadãos”. Esta afirmação, como muitas outras, dá a impressão de que mais ninguém tem essa obrigação. Ora, a saúde é de responsabilidade em primeiro lugar do próprio indivíduo em particular, que deve se cuidar e procurar o médico quando adoecer; não conseguindo fazê-lo sozinho buscar o amparo de seus familiares; também aí não encontrando solução para seu problema, deve procurar uma organização maior, que é sua comunidade, seus amigos, seus vizinhos ou a autoridade municipal que lhe está mais próximo. Somente em ultimo caso é que o sujeito deve procurar os poderes públicos para solucionar seu problema de saúde. O mesmo diga-se com a educação e outros direitos fundamentais. 

E hoje os Estados modernos agem assim? Não. As constituições modernas concedem ao poder estatal poderes extraordinários para gerir todo o corpo social, intervindo arbitrariamente em tudo sob o argumento do bem comum. E essa mentalidade intervencionista não é própria apenas dos governos federais que regem as nações, ela domina completamente os governadores de estados e províncias e os prefeitos, tanto das capitais quanto de qualquer  cidadezinha do interior, seja do Brasil seja de qualquer país do mundo. Digo mais: essa mentalidade contaminou todo o corpo social e a maioria já se acostumou a esperar do governo favores, vantagens ou o cumprimento de alguns direitos, sem fazer ele mesmo esforços para consegui-lo. Competiria ao Estado, segundo essa mentalidade, dar tudo, resolver tudo, controlar tudo.

Vejamos o exemplo de como agiram no combate à pandemia do covid que grassou no mundo. Não há um só país do mundo em que as medidas tomadas por autoridades, seja locais ou nacionais,  não tenham sido baseadas no poder absoluto do  Estado sobre os indivíduos e sob alegação do bem comum. O bem comum, no caso, é proteger as populações contra a propagação da doença. Mas, a própria população não foi orientada a se defender? Se foi como se explicar ações restritivas e punitivas? Trata-se da exorbitância do poder estatal sobre os indivíduos, sobre as famílias e sobre as comunidades que ficam abaixo do poder estatal. Trata-se apenas da afirmação de um princípio de poder civil, pelo qual o Estado é superior a tudo e pode até suprimir direitos elementares, caso julgue necessário, para cumprir o que ele mesmo julga ser a defesa do bem comum. 

Nesse sentido, os erros da Rússia dominam toda a terra. E talvez tenha sido com base nessa forma de governar que Nossa Senhora tenha dito em Pesqueira (PE), ao aparecer a uma pobre lavradora, no ano de 1936, que o comunismo dominaria o Brasil, mas por pouco tempo. Não, não é o PC que toma conta do poder, mas uma idéia que vem dele que é essa supremacia do poder estatal esmagando e se impondo sobre toda a sociedade. 

Analisando os últimos acontecimentos ocorridos no Brasil, desde a pequena cidade do mais pobre interior até a capital mais rica que é São Paulo, não é essa mentalidade que predomina entre os que dirigem o nosso país, não é isso que consta em nossas leis ou medidas tomadas pelos legisladores no calar da noite?

sábado, 10 de maio de 2025

MÃE DO BOM CONSELHO VEM AO BRASIL ATRAVÉS DE UM ANJO

 

 





O Padre José de Campos Lara, natural de Itu, São Paulo, era jesuíta e acompanhou o drama que se passou com seus irmãos na Companhia de Jesus quando foi perseguida e fechada no século XVIII. No ano de 1785, passeava certo dia meditando numa praia deserta, quando de repente se deparou com um jovem portando um quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho.  O jovem se aproximou do padre e ofereceu-lhe o quadro, pintado a óleo, dizendo que o levasse para o Brasil, pois no lugar onde Nossa Senhora fosse venerada através daquele quadro surgiria um grande colégio jesuíta.

Perplexo, o Padre José começou a argumentar para o jovem que não tinha recursos para fazer a viagem. O jovem lhe disse que havia um navio naquelas proximidades, cujo comandante o deixaria viajar gratuitamente até o Brasil. O padre ficou consolado com a notícia dada pelo jovem, e também pelo fato de se oferecer a oportunidade de construir um colégio jesuíta em Itu, haja vista que a Companhia de Jesus estando extinta a construção de tal colégio significava o seu retorno à atividade.  Mas, ao tentar agradecer ao estranho jovem, este misteriosamente desapareceu. Notando que se tratava de um Anjo, o padre foi confiante procurar o referido navio, onde achou gratuitamente passagem até o Brasil como lhe dissera o Anjo.

A restauração da Companhia de Jesus e a construção do colégio em Itu só se cumpriram porém após a morte do Pe. José, mais de oitenta anos depois da aparição do Anjo. (Extraído do livro “Mater Boni Consilii” – de João S. Clá Dias, pág 67 a 82.)

terça-feira, 6 de maio de 2025

NA OBEDIÊNCIA SE ENCONTRA A FINA PONTA DO EXERCÍCIO DA LIBERDADE

 

                                                         (Dr. Plínio Corrêa de Oliveira)




Se é verdade que a liberdade para mim consiste em que os bons movimentos que brotam de mim, ora pela ação da natureza, ora pela ação da graça, cheguem a seu termo normal, como esses movimentos são sempre de acordo com os Mandamentos, acontece que, quando obedeço aos Mandamentos, exerço minha liberdade. Nesta perspectiva, a plenitude da liberdade é idêntica a obedecer.

Entretanto, na minha liberdade vejo que sou concebido no pecado original. E que eu conheço o suficiente a respeito do bem para saber que é mais amplo do que minha mentalidade pode abarcar, de maneira que algo eu vejo e algo não vejo. Logo, eu devo me apoiar em quem vê. Assim, minha liberdade consiste em procurar quem vê e pedir-lhe que me leve, que me esclareça para eu andar.

Conformando meu modo de ver ao daquele que me explica, que me persuade e que eu vejo que vê mais do que eu e que, portanto, devo seguir, embora eu não compreenda, eu obedeço. Mas, no fundo, exerço minha liberdade, porque sigo aquele caminho que devo querer seguir e que há de levar a bom termo os bons movimentos de minha alma.

Por fim, há um terceiro modo de liberdade. Quando vários querem fazer uma obra, está na natureza das coisas que haja um que mande, porque do contrário a obra não se faz.  Isso era assim mesmo antes do pecado original e é um ponto aceito pelos teólogos unanimemente. Se Adão e Eva não tivessem pecado, teria havido governo, teria havido estados, teria havido nações, teria havido uma organização incomparavelmente mais perfeita do que a atual, mas com uma autoridade.

Por que eu, obedecendo à autoridade, que eventualmente pode até ver menos do que eu, mas que é autoridade, exerço minha liberdade? É porque se eu quero que as coisas estejam em ordem, eu hei de compreender que há de haver uma autoridade que possivelmente veja menos do que eu, mas que mande. E eu farei o que a autoridade manda.

De maneira que continuamente, segundo a Doutrina Católica, o exercício da obediência é o exercício da fina ponta da liberdade. E a dignidade do homem não consiste, como diz a Revolução, em não obedecer, mas em obedecer a quem se deve.

(Extraído da Revista “Dr. Plínio”, edição de março de 2025, pág. 17, numa conferência de Dr. Plínio Corrêa de Oliveira sobre os Novíssimos do Homem, abordando o Céu e a ressurreição dos corpos)

Em outra oportunidade, a liberdade quando é vista num direito, Dr. Plínio defende que esse direito é de fazer o bem. Não tem sentido, portanto, certo ‘direito” de ter liberdade de fazer tudo o que desejar, inclusive o mal.

 

“O DIREITO DE FAZER O BEM”



Plínio Corrêa de Oliveira

É o momento de dizer uma palavra sobre a livre iniciativa.
Tanto se fala, em nossos dias, da liberdade individual, consequência natural da condição de ente dotado de alma e corpo, de inteligência, vontade e sensibilidade, como é o homem.

Infelizmente, contudo, o zelo por essa liberdade se aplica cada vez mais em restringir o poder do Estado na repressão da imoralidade, do vício e do crime. Vivemos, por exemplo, na era da anarquia penitenciária, do que fatos ocorridos recentemente no Brasil dão exemplos consternadores.

Porém, os zelotes[3] da liberdade dão cada vez menos mostras de seu empenho em defender as legítimas liberdades do homem de bem contra essa ação do Estado, ora invasora quase até as raias do totalitarismo, ora omissa quase até as raias da anarquia. Assim, a proibição de uma peça de teatro imoral pode dar ocasião a que se desencadeie contra o Governo um verdadeiro estrondo publicitário. E a eventual atuação da polícia contra piquetes grevistas pode ocasionar algo análogo. Tudo em nome da liberdade.
De maneira que propagar no palco o vício ou o crime seria um “direito humano”. Usar de violência para impedir a colegas que trabalhem honestamente no sustento do lar, também seria um “direito humano”.

Ora, a liberdade do homem consiste essencialmente no direito de fazer o bem.

Por disposição divina, o homem tem necessidades a enfrentar nesta vida, mas ao mesmo tempo é dotado de recursos para prover essas necessidades. Os problemas de cada homem devem ser resolvidos antes de tudo por ele mesmo, isto é, com a utilização de seus dotes de corpo e muito principalmente dos de alma. O direito de utilizar em favor de si mesmo sua própria inteligência, os recursos de sua própria sensibilidade - nisso consiste a livre iniciativa. Negá-la, mutilá-la, criar-lhes entraves usurpatórios, é tratar o homem parcial ou inteiramente como coisa, como objeto inanimado.

Nos casos em que o homem se encontre legitimamente impedido de prover por si as próprias necessidades, é natural que ele recorra à ação supletiva do grupo social que lhe é mais próximo, ou seja, a família.

Quando a ação subsidiária da família se verifica legitimamente insuficiente, pode o homem recorrer a outros grupos menos próximos, como associações profissionais, caritativas, etc.

Na eventualidade de mesmo então não encontrar a ajuda necessária, está o homem no direito de recorrer, também subsidiariamente, à ação do grande grupo que sobrepaira a todos os outros, e na mais alta instância o protege: o Estado.

O princípio de subsidiariedade, assim descrito, situa a livre iniciativa no âmago de um conjunto de círculos concêntricos sucessivamente destinados a ajudá-la.

É ela exatamente o oposto do coletivismo, que se propõe a estancá-la.

Com efeito, o Estado coletivista impede toda iniciativa individual, suprime a família e os demais grupos intermediários entre o indivíduo e o Estado, e enfeixa tudo nas mãos do Poder Público, dotado, para dominar a cada qual, do cetro da propaganda monopolizada, e da terrível chibata da perseguição policial.
Em consequência dos princípios enunciados, o Governo deveria demonstrar ao povo que, de fato, nas condições atuais do Brasil, o direito natural imprescritível do homem ou do bem comum nacional exigem a reforma agrária.

Tal demonstração ela a deveria fazer em duas ordens de ideias:

a) Na linha da justiça, provando que a atual estrutura fundiária do País é injusta;

b) Na linha do bem comum social e econômico, demonstrando que a atual situação fundiária é contrária ao interesse coletivo, porque não produz suficientemente.

Mas para isto seria indispensável que ele exibisse a argumentação doutrinariamente correspondente, bem como estatísticas, pesquisas, análises e relatórios em abundância, para que o povo pudesse formar seu juízo sobre a matéria. Porém, nada disso fez ele.

 (“Última Hora”, 01 de novembro de 1985)

 Veja nossa postagem de sábado, 9 de maio de 2009, mais completa sobre o tema: https://quodlibeta.blogspot.com/2009/05/o-verdadeiro-sentido-das-palavras.html

segunda-feira, 5 de maio de 2025

QUARTO CENTENÁRIO DA EXPULSÃO DOS HOLANDESES DA BAHIA

 




Estamos comemorando o quarto centenário da expulsão dos holandeses na Bahia, ocorrido em maio de 1625. Data tão significativa era para ser comemorada festivamente por nosso povo, memória importantíssima de nossa história.

A propósito dessa data, publicamos a seguir o texto de nosso artigo estampado na revista “Catolicismo” (setembro de 1995), comentando sobre a invasão de 1624 e demais investidas dos holandeses, expulsos do território baiano por aguerridos defensores da Fé católica

Catolicismo publicou três estudos (julho/ 86, janeiro e fevereiro) sobre as invasões holandesas ocorridas no Brasil no século XVII. Durante 30 anos tentaram os hereges criar um enclave, usando então Pernambuco como cabeça-de-ponte para implantar a religião "reformada" protestante.

No presente artigo poremos em realce apenas as investidas calvinistas contra a cidade de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, sede do Governo-Geral do Brasil e importante ponto estratégico.

Será preciso lembrar que, desde 1580, Portugal havia sido anexado ao reino da Espanha. Desta forma, o território brasileiros e demais colônias lusas ficaram sob domínio da coroa espanhola até 1640, quando Portugal recobrou sua independência.

 

A resistência contra a tomada de Salvador

Uma armada invasora holandesa, composta de 26 naus grandes e 13 mercantes, postou-se diante da capital baiana em abril de 1624.

Subjugada a cidade, os invasores entregaram-se a saques, profanações e sacrílegos[1]. Os desterrados, que constituíam a maioria da população, calculando-se dez mil só de portugueses, refugiaram-se pelas cercanias. Os fazendeiros e donos de engenhos acolhiam a todos com caridade, não faltando comida e abrigo aos que os procuravam.

Dispersos pelos matos, resolveram os luso-brasileiros assentar arraial na aldeia indígena do Espírito Santo.

Diogo de Mendonça Furtado, Governador-Geral do Brasil, havia sido preso e enviado à Holanda. Assim, o governador de Pernambuco, Matias de Albuquerque, em consequência do sistema de sucessão adotado na época, passou a ser a maior autoridade encarregada de coordenar a resistência armada. Contudo, devido à grande distância e difícil comunicação com Recife, O' povo baiano aclamou capitão-mor o Bispo Dom Marcos Teixeira, posteriormente denominado Bispo Guerreiro.

Imediatamente Dom Marcos transformou a aldeia do Espírito Santo em acampamento de retirantes e Quartel General da resistência anticalvinista. Não obstante ser o local muito acanhado, ergueram-se uma capela e algumas frutificações.

As táticas denominadas de assaltos, sob o comando do Bispo, serviram de modelo para a formação do que mais tarde se denominou companhias de emboscadas (guerrilhas, em termos atuais), por ocasião da expulsão definitiva dos holandeses de Pernambuco, em 1654, cognominada Insurreição Pernambucana.

Entendendo que a tomada da cidade fora castigo do Céu, devido aos vícios e pecados de seus habitantes, Dom Marcos passou a fazer rigorosas penitências, com vigílias e jejuns, de modo a se tomar exemplo para todas as classes sociais de seu bispado.

 

O milagre da cruz

Certa ocasião, os hereges atacaram a Ilha de Itaparica em busca de mantimentos, desembarcando num engenho em cuja entrada havia um cruzeiro de madeira. Vendo a cruz, odiada por todo herege, os invasores nela aplicaram algumas cutiladas. A cruz milagrosamente se torceu, virando-se para um lado, parecendo indicar o caminho a seguir pelos batavos. Estes depararam-se então com um dos nossos comandantes, chamado Afonso Rodrigues da Cachoeira, o qual, com a ajuda de alguns índios, matou oito dos hereges. O fato milagroso ocasionou tanta veneração votada àquela cruz, que dela fizeram-se relíquias responsáveis por muitas curas.

A brava resistência aos invasores criou condições propícias para o enfraquecimento do inimigo e a grandiosa vitória da armada espanhola-lusitana, que veio libertar a Bahia no ano seguinte.

 

A resposta da nobreza

Ao chegar a Portugal e Espanha, a notícia da invasão holandesa causou profunda comoção. Parecendo sair de um letargo, portugueses e espanhóis aprestaram-se logo a organizar uma expedição para libertar a Bahia. Determinou o rei de Espanha a todos os sacerdotes que celebrassem missas, rezassem uma novena e ladainhas nessa intenção. Em Lisboa, o Santíssimo Sacramento ficou exposto à adoração pública, em súplica pela concretização da expedição.

Dirigiu o rei da Espanha, com data de 7 de agosto de 1624, carta a seus governadores espalhados pelo vasto império, convocando todas as naus disponíveis para dirigir-se ao Brasil, já a 20 do mesmo mês, para expulsar os invasores.

A campanha pela libertação da Bahia empolgou nobres e plebeus, lusos e espanhóis.

Dom Afonso de Noronha, do Conselho do Estado e antigo Vice-Rei da Índia, foi o primeiro a se alistar. Em seguida, inscreveram-se mais de 100 fidalgos.

 

A reconquista da cidade do Salvador

As notícias sobre a vinda da armada para libertar a Bahia já tinham chegado aos ouvidos dos holandeses, que com muito afã se prepararam para o confronto. Também eles aguardavam a chegada de uma armada de socorro mandada por Amsterdã.

Ao contrário da invasão de 1624, a reconquista da Bahia, um ano depois, deparou com uma praça bem fortificada pelos holandeses e disposta a tudo para não se entregar. Foi construído um forte novo com uma fornalha de três bocas, onde se esquentavam pelouros e se faziam outros fogos para o combate; foram assestadas 92 peças de artilharia, e ainda diversas trincheiras disseminadas pela cidade, algumas das quais muito bem fortificadas. Na praia firam erguidos sete baluartes, alguns capazes de conter 100 mosqueteiros. Além do mais, possuíam os batavos 22 navios de guerra bem equipados.

Anteriormente à chegada da armada, os católicos mantinham os holandeses sob intenso cerco, não os deixando sair da cidade "nem para pegar um limão". A 29 de março de 1625, dia da fundação da cidade, véspera do Domingo da Ressurreição, chegou a expedição espanhola-lusa a Salvador, sendo o desembarque efetuado imediatamente.

Já em terra, os combatentes distribuíram-se com suas companhias pelos montes principais que circundavam a cidade, recolhendo-se em casas ou barracos de palha. Nobres e soldados, todos trabalhavam na preparação do assédio à cidade.

Os capitães das mais nobres estirpes luso-espanholas estavam ali presentes, porque o ideal da nobreza exige uma vida inteiramente dedicada ao sacrifício pela Fé católica e pelo Rei.

 

Rendição holandesa e desagravo pelas profanações

No início de maio de 1625, um ano após a invasão batava em território baiano, entravam os católicos triunfantes na cidade de São Salvador. Arriada a bandeira dos holandeses, hastearam as de Portugal e Espanha.

A rendição dos holandeses ficou para sempre marcada na memória de nosso povo. Até hoje se conserva a mesa onde foi assinada a rendição, no mesmo lugar, que é a magnífica sacristia do Convento do Carmo, em Salvador. Na contra-capa da presente edição, apresentamos foto desse local, ora transformado em Museu.

Haviam sido profanados vários lugares dedicados à prática da Religião: o Colégio dos jesuítas transformado em mercado, a igreja contígua, em adega, e outras igrejas utilizadas como armazéns de pólvoras etc. Haviam também sido enterrados nas igrejas, principalmente na Catedral, os corpos dos comandantes holandeses mortos em combate. Após o desfile de vitória, esses restos mortais foram dali removidos, sendo as igrejas re-consagradas ao culto divino.

 

Resolvem os holandeses invadir a Bahia novamente

Depois dessa primeira invasão da Bahia, terminada em 1625, voltaram os calvinistas a atacá-la, em março de 1627, quando o almirante Piet Heyn, praticando pirataria na costa e burlando-se dos canhonaços disparados da cidade, conseguiu atacar uma frota de 26 navios mercantes e roubar grande parte da mercadoria, principalmente açúcar.

Os holandeses haviam se apoderado de Olinda e Recife desde 1630. Ao saber das desavenças existentes entre o Conde de Bagnuolo e o novo Governador-Geral, Pedro da Silva, Maurício de Nassau decidiu atacar Salvador. O conde de Bagnuolo era um nobre napolitano que havia tomado parte na expedição contra os holandeses, em 1625.

 

Mais uma tentativa frustra de tomar a Bahia

Assim, vindo de Pernambuco com 35 navios bem armados e seis mil homens, em abril de 1638 chegava Nassau a Salvador. Porém, foi ele sucessivamente repelido, pois as forças luso-brasileiras da Bahia estavam não só melhor preparadas, como também com espírito mais aguerrido.

Os combates duraram aproximadamente um mês, e já no dia 25 de maio, após sucessivas derrotas, resolveu Nassau fugir vergonhosamente, sem ter obtido uma vitória sequer. Pela firmeza da resistência, o governardor Pedra da Silva recebeu o título de o "Duro".

Tendo perdido boa parte de seu exército nessa expedição, ficou o chefe holandês com seu prestígio irremediavelmente comprometido.

 

País dividido e protestante?

E assim, mais uma vez, o território brasileiro foi salvo da dominação dos hereges. Primeiramente devido à proteção especial da Divina Providência. Depois, em virtude da atuação de homens que manifestaram possuir um espírito característico da mais alta nobreza: nobres pelo sangue e nobres por sua bravura.

A esses valorosos deve o Brasil haver-se mantido fiel à Religião verdadeira e forjado sua nacionalidade, como também preservado sua unidade territorial, sem as divisões ocorridas em tantos outros países.

É nosso dever agradecer tais dádivas providenciais e pedir a Deus e à Padroeira nacional, Nossa Senhora da Conceição Aparecida, que nossa Pátria continue a se manter fiel àqueles princípios pelos quais lutaram tantos heróis do passado, cuja firmeza na luta e fortaleza na Fé tornaram possível perpetuar no Brasil o verdadeiro espírito católico”.

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FONTES DE REFERÊNCIA:

I Francisco Adolpho Varnhagen, História Geral do Brasil, Ed. e & Laemmert, Rio, 1874.

2. Robert Southey, História do Brasil. Ed. Garnier, Rio, 1862.

3. Gaspar Barleus, História dos feitos (de Maurício de Nassau) praticados durante oito anos no Brasil. Ed "Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1980.

 

 



[1] Segundo testemunho dos próprios holandeses, que diziam isso para se vangloriar, os invasores levaram para a Holanda 7 navios carregados de riquezas – objetos de ouro e prata, além sedas e outros tecidos de luxo – demonstrando assim que Salvador era a maior e mais rica cidade das Américas, sendo que toda essa riqueza tinha vindo de Portugal.