O pequeno Rivière era muito meditativo, e por
amar muito a Religião e a Pátria sonhava frequentemente com as duas.
Consternava-lhe ver quão decadentes viviam as pessoas: sua época, o século
XIII, já era profuso em costumes e ideias revolucionárias. Na cidade em que
morava as pessoas muito comumente procuravam deleitar-se com os prazeres da
vida, e tudo faziam para evitar qualquer sacrifício, dureza, cruz, sofrimento.
E assim, muitos riam folgadamente, passeavam despreocupadamente, viajavam a
procura de aventuras e novidades e, sobretudo os jovens, tinham como objetivo
de suas vidas não mais o heroísmo e sim o romantismo amoroso.
E o jovem pensava: aonde vai dar tudo isto? “Se
continuarem assim – dizia -, abandonando o dever pela busca do prazer, que
restará de nossa juventude? Que será de nosso futuro?”
O sacrifício, antes tido como decorrência
natural do pecado original, agora passa a ser desprezado a qualquer custo:
deste modo, as roupas, as modas, os costumes, as preferências de todos, tudo
enfim, tendia a caminhar para a gostosura da vida. E o garoto franzia o seu
semblante, dia e noite, presenciando cenas, ouvindo conversas, vendo fatos que
contradiziam, embora com pouca ênfase em alguns casos, todos os princípios
cristãos para os quais houvera nascido e criado.
E foi assim que, certa noite, Rivière sonhou.
Era um sonho bem diferente dos que costumava ter. Foi algo muito inusitado para
ele. Em seu sonho ele se encontrava num mundo completamente diferente.
Achava-se num futuro bem distante de seu tempo, quase oito séculos após. Em sua
época já se falava que haveria um futuro cheio de paz e tranquilidade. Mas, na
realidade, o que ele presenciava de paz em seu sonho era completamente
diferente do que as pessoas imaginavam em sua época. Ele ficou muito chocado com
o que viu:
- Que lugar estranho! – pensava. Para que tanto
rebuliço? E quantas pessoas juntas! Quanta multidão a caminhar de um lado para
o outro! Por que será que estão assim reunidos andando ao léu sem destino? Não
vejo ninguém chamando-os para alguma batalha, nem tampouco para alguma
peregrinação religiosa, e no entanto eles andam com pressa, embora sem rumo e
sem um objetivo definido...
Repentinamente foi abordado por alguém que o
observava:
- Olá, rapaz! Não está sentindo calor? Ou está
vindo do frio?
- Calor? Que calor? Nós geralmente sentimos
muito calor quando estamos empenhados numa batalha – sentimos o calor da luta.
A que calor está se referindo?
- O calor do tempo, ora essa! Não ver que o sol
está a pino? Por que não tira estas roupas pesadas? Refresque-se!
- Refrescar-me? Em minha terra nós nos
refrescamos quando estamos cansados após dura batalha ou renhido trabalho, mas
neste caso entramos em casa e nos recostamos a um leito.
- Não me diga que em sua terra as pessoas usam
estas roupas pesadonas em pleno verão, suando deste jeito... é verdade? Se for
assim, de que terra você veio?
- Olhe, amigo, antes do desconforto do meu
corpo está a paz de minha alma, e porque a prezo muito é que procuro vestir-me
dignamente; quanto ao corpo, porém, não é verdade que estou suando mais do que
o senhor, nem tampouco sentindo mais calor...
- Pode chamar-me de você mesmo, pois eu não sou
senhor. Quero ver você provar o que disse: como posso estar suando ou sentindo
mais calor que você se uso roupa leve e fina?
- É simples: o calor não vem diretamente para o
meu corpo, pois o mesmo está protegido pela roupa. Quanto ao senhor, verifique
que nos lugares onde a roupa não cobre, ou protege menos, o suor é mais
intenso. Se quer um exemplo melhor, veja aquele palacete quadrado ali defronte,
onde várias pessoas estão vestidas apenas com alguns trapos e sendo servidas
por alguns lacaios muito bem vestidos. Veja... ali em frente, senhor.
- Já disse que não sou nenhum senhor. Chame-me
apenas de você. Estava se referindo àquele hotel quando mencionou “palacete
quadrado”? As pessoas ali que você diz usarem trapos nós chamamos de turistas e
o que denomina de “lacaios” nada mais são do que os garçons que os estão
servindo.
- Turistas? Garçons? O que vem a ser isso?
- Ah, que ignorância! Turistas são estas
pessoas que vivem viajando e se hospedando em hotéis, isto é, hospedarias, com
piscinas e outras diversões. E garçons são estes homens que lhe servem bebidas
e comidas enquanto se divertem. Vamos lá, que quer dizer sobre o calor que
estão passando ali?
- Não importa como são chamados, pois, na
realidade trata-se de lacaios servindo a seus senhores. Veja que os chamados
“garçons” estão todos bem vestidos, com roupas “pesadas” como falou, alguns até
de gravatas, enquanto que os “turistas” estão vestidos apenas com alguns trapos
de panos. No entanto, não se vê um só garçom com calor e suando, enquanto entre
os turistas há alguns que até estão se abanando de tanto calor.
- Nunca tinha notado isso. Como se explica?
- É que o calor vem direto para o corpo dos mal
vestidos, que estão sem a proteção das roupas, enquanto que os garçons têm o
corpo protegido pela roupa e sofrem menos os efeitos do tempo. Afinal, como se
chama o senhor?
- Por que teima em chamar-me de senhor? Veja que não sou tão velho assim. Para nós o
termo senhor significa velhice, decadência, enquanto “você” é um tratamento
mais igualitário e denota juventude. Deixemos isso de lado. Diga-me de onde
veio e seu nome.
- Meu nome é Rivière: como vê sou jovem ainda,
mas mesmo assim já estou me preparando para ser armado cavaleiro pelo meu
senhor, o grande duque de Lyon. Venho sendo adestrado há bastante tempo pelo
duque. Por enquanto estou sendo apenas seu pajem, mas ele me prometeu...
Rivière foi interrompido por uma estrepitosa
gargalhada. Após breve silêncio, o estranho falou:
- Pois meu nome é Estrofe do Pé Quadrado e tudo
o que você está dizendo bem demonstra sua insanidade mental. É pena, tão jovem
e já um tanto desmiolado...
- Ah,é? Pois fale-me um pouco do senhor: quem
é, de onde veio, o que faz aqui e o que pretende na vida em seu futuro.
- Apesar de não gostar que me chame de senhor,
pois isto me aborrece, vou lhe falar um pouco de minha pessoa. Como disse, meu
nome é Estrofe do Pé Quadrado, um nome estranho realmente mas muito do agrado
de meu pai, que era poeta: como nasci aleijado deste pé esquerdo, ele por
ironia e irreverência colocou-me tal nome. Hoje em dia, é bom que saiba, as
pessoas usam muito de ironia e irreverência.
- Que horror! Ironia e irreverência – que
absurdo!
- Por que se espanta? Saiba que vivemos numa
época em que tudo caminha para a irreverência. E a ironia também está muito em
voga. Como é lá na sua terra?
- Pois em minha terra, ou em meu tempo, os
nomes das pessoas são postos conforme determinadas tradições religiosas ou de
família, geralmente em homenagem a santos nossos protetores. Ao contrário, nós
primamos pela reverência e respeito ás pessoas. Respeitamos muito a dignidade
da pessoa humana. Por isso o tenho chamado de senhor.
- Pelo que vejo você não é deste mundo: onde
nasceu? Em que época?
- Como já disse, sou de Lyon, França. Nasci em
1294, portanto, no final da Idade Média.
- Vou acreditar no que diz, somente para ver
até onde quer chegar. Sendo assim, encontramo-nos, eu e você, nesta movimentadíssima
avenida de Nova Yorque, conversando sobre nossas terras ou nossas eras
históricas, sendo eu deste século XXI e você da Idade Média – uma diferença de
quase oito séculos. Na realidade, estou aqui de passagem.
- Turista também?
- Um pouco de turista, mas muito mais de
comerciante, pois venho sempre aqui fazer compras.
- Nasceu em que país?
- Sou brasileiro, nasci em São Paulo. Aqui
estou a negócios, e você?
- Não sei como cheguei até aqui. Tudo é muito
estranho, estou confuso e perplexo. Não entendo certas coisas que estou
presenciando. Por exemplo, o que são aqueles bólides luminosos andando sobre
caminhos negros lá embaixo?
- São veículos, espécie de carruagens de seu
tempo, mas movidos por si mesmo, que chamamos de automóveis. As estradas negras
chamamos de auto-estradas, e a cor escura é devida ao breu ou asfalto de que
são feitas.
- E naquelas ruas, para que tantas cordas esticadas naqueles
postes?
- São fios elétricos. Através deles corre
energia elétrica para acender as luzes e mover as máquinas e aparelhos
elétricos em geral.
- E por que as pessoas andam assim tão
confusamente pelas ruas? Veja quanta multidão andando ao léu sem destino...
quanta balbúrdia, e como se vestem de maneira ridícula!
- As pessoas que você vê estão andando pelas
calçadas, pois se andarem pelas ruas podem ser atropeladas pelos carros. Quanto
às roupas, não vejo nada de ridículo nas
que as pessoas estão vestidas hoje em dia: ridículo está você aí com este
jaquetão grosseiro! As roupas modernas
são leves, alegres, poucas pra não fazer calor, a fim de que as pessoas se
sintam mais á vontade e livres, acabando com aquela ideia de sufoco que havia
antigamente. O importante é a liberdade, que começa pelos movimentos do corpo.
- Mesmo que esta liberdade leve a pessoa para a
imoralidade?
- Imoralidade? Nós não sabemos mais o que é
isso: há muito tempo que não existe mais moral em nosso mundo.
- Não sei como pode haver uma sociedade onde
não haja respeito pela moral. Como é, então, o relacionamento entre as pessoas?
Há dignidade? Existem leis superiores para serem cumpridas e manter a paz? Há
também alguns costumes que levem as pessoas a um mútuo respeito? Tanta
liberdade não acaba suprimindo alguns direitos como, por exemplo, o da
privacidade?
- Chega de tanta pergunta. Estou gostando agora
mais da conversa porque esqueceu-se de chamar-me de senhor. Vamos em frente.
Nós baseamos nossa convivência social, meu rapaz, apenas na luta pela
sobrevivência. Ou então, pelo dinheiro, ou pela posição social. Somente isto
faz com que as pessoas andem se respeitando uns aos outros. Por causa da
posição social respeita-se o delegado, o juiz, o prefeito, o governador; por
causa do dinheiro respeita-se o gerente de banco, o financista e o homem de
negócios, como o comerciante ou o industrial. A dignidade só existe para quem
tem dinheiro e posição social. E todos assim gozam de liberdade, vivendo
somente para este fim: a luta pela sobrevivência.
- Ah! Agora entendo porque não quer que o chame
de senhor. Neste seu mundo quem não possui dinheiro e posição social torna-se
um pária. Não há respeito pelos pobres. Onde está a dignidade do homem como
filho de Deus? Meu Deus, que horror!
- É o século XXI, meu chapa! Nós vivemos hoje a
lei da selva: não a selva da floresta, mas a selva de pedra das grandes
cidades, onde tudo converge para esta luta de que lhe falei. Quem não vencer
neste mundo fará parte da escória e para este nossa sociedade tem reservado
apenas alguns. cortiços, certas favelas, um submundo terrível, pois não há
outra saída. Quanto aos demais, os que conseguirem se superar e vencer na vida,
gozarão felizes a doçura do “bom viver”, com automóveis e aviões de luxo,
viagens turísticas, luxuosos hotéis de veraneio e clubes com piscinas
super-confortáveis. É a vida, meu caro! Alguns têm que penar para outros gozar!
- Como é triste teu mundo.
- Triste? Você está louco! Dê uma olhada nestas
ruas e veja quantas casas de diversões e entretenimento irá encontrar. Aposto
em que em sua terra, ou em seu tempo, nada disso havia.
- Não vejo tais diversões como fruto de uma
verdadeira alegria. Não acredito que depois de tanto frenesi as pessoas não se
sintam com a consciência pesada.
- Como é que a consciência pode ficar pesada?
- Pode ficar pesada e doer, sabendo-se que o
resto do mundo pena muitas misérias e há
muita injustiças a corrigir, enquanto se diverte e se goza a vida de uma forma
assim tão despreocupadamente.
- Não, meu caro, nós não temos problemas de
consciência. Encontramos na vida moderna vários recursos com que possamos
abafar a consciência. Procuramos sempre a fuga da dor, principalmente disso que
se chama “dor da consciência”.
- Como é feito isso?
- Simplesmente não nos preocupamos com os
outros! É cada um por si. E agindo assim não há como a consciência possa doer,
ela parece nem sequer estar viva.
- Entendo. Gostaria de deixar patente, no
entanto, que isto não lhes traz uma autêntica alegria. Não pode ser autêntica
uma alegria que procura abafar a consciência ao ponto de deixá-la quase morta.
A verdadeira alegria está no interior de cada um, onde deve morar com toda a
força nossa consciência. Só pode ser verdadeira e autêntica esta alegria
quando, ao nos divertirmos, a justiça, a paz e a união campearem ao nosso
redor. Se o homem se diverte e goza, mas seus irmãos tudo sofrem, esta alegria
é falsa. Mais ainda se a consciência não desperta e não lhe chama a atenção
para a realidade que o cerca.
De repente, ambos percebem que há uma grande
discussão numa rua onde se aglomerava pequena multidão. Perguntaram a um
transeunte, tendo o mesmo dito que se tratava de um problema corriqueiro, uma
briga por causa do lugar na fila.
- Como é isso? – pergunta Rivière – uma briga
por causa de lugar na fila?
- Sim, isso ocorre com frequência hoje em dia.
O sujeito está numa fila qualquer, ou para fazer uma compra, ou para ser
atendido num banco, ou mesmo para embarcar num transporte, e de repente alguém
“fura” a fila, isto é, passa na frente do outro. E daí surge a briga, pois o
que está na frente não suporta ver o outro lhe passar na frente. É assim também
na sociedade, de um modo geral, pois ninguém suporta ver outro passar na sua
frente, e muita gente briga por causa disso.
- Mas, brigar por causa de um lugar numa fila?
- Sim, é um direito de quem estar na fila ter
seu lugar respeitado – se alguém entra na frente está ferindo um direito...
- Oh mas que direito mais bobo? Como é que se
briga por causa de uma coisa tão banal?
- No seu tempo ninguém brigava na fila?
- Não era costume haver filas no meu tempo, a
não ser para se receber a Sagrada Comunhão, na Santa Missa. E aí, o normal é o
contrário: as pessoas fazem questão de ceder seu lugar a outras. Trata-se de um direito tão secundário, tão
pequeno, que a gente pode ceder a outro sem qualquer dificuldade. Aliás,
aprendemos que ser educado consiste exatamente em ceder alguns pequenos
direitos nossos a outras pessoas. Se causam incômodos é para que nos
acostumemos com eles.
- Já vi que você é um filósofo. Mas nosso mundo
não vive mais de filosofia. Voltando ao assunto anterior, diga-me, como é que
as pessoas se divertiam em seu tempo?
- Era algo muito diferente do que chamam hoje
de diversão. Tínhamos naquele tempo cavalgadas, caçadas, jogos de armas, todo e
qualquer passatempo era feito para aperfeiçoar o caráter das pessoas. Tudo era
muito honesto e tão natural que a alegria se externava espontaneamente.
- Dir-lhe-ei o mesmo: como poderia ser
verdadeira esta alegria em seu tempo se haviam guerras, injustiças praticadas
pelos nobres, violência contra os pobres, etc?
- Era verdadeira nossa alegria porque a paz
campeava em toda a sociedade e a justiça era aplicada em todo o corpo social.
Haviam temporários rompimentos de paz, haviam alguns princípios de justiça
feridos, mas logo, logo, eram corrigidos e reparados, pois haviam mecanismos
sociais para reparar todos estes males, que sempre ocorrem entre os homens.
Enquanto seu mundo é voltado para dentro de cada um, completamente egoísta, sem
pensar senão no gozo e no prazer pessoal, o nosso, pelo contrário, tinha
filosofia de vida completamente contrária: praticamos a caridade, amamos ao
próximo como a nós mesmos e por amor a Deus, vivemos da abnegação e do
sacrifício, temos cavaleiros que vivem para a proteção dos mais fracos, os
pobres, os órfãos e as viúvas, nos preocupamos mais com a felicidade dos outros
do que com a nossa. E isto nos torna mais felizes ainda.
- Pode ser verdade, mas não acredito no que
diz. Não acreditamos, homens do século XXI, mais em ninguém. Para nós todos os
homens são egoístas, interesseiros e ladrões. Todos são filhos do pecado e aqui
pecam, alguns secretamente, os hipócritas, e outros abertamente, os sinceros.
Não acreditamos mais em honestidade, em abnegação desinteressada, coisas do
tipo amor ao próximo, não acreditamos mais em virgindade, etc. Pergunte por aí
e não vai encontrar mais nenhum rapaz ou moça que saiba o que é castidade.
- Volto a repetir: como é triste o teu mundo!
Nunca imaginaríamos que a busca desenfreada do prazer levasse o homem a tal
decadência.
- Pois é: assim como não acreditamos no homem
de nosso tempo, também não acreditamos no do seu. Acho que não é verdade que as
pessoas de sua época eram abnegadas, desinteressadas, como dissestes. Pelo
contrário, acho que eram todas interesseiras, egoístas e exploradoras umas das
outras. Foi por causa delas que chegamos ao grau de miséria humana ainda
existente no mundo atual.
- Seria impossível a construção da Civilização
Cristã, palpitante na época medieval, sem que houvessem homens assim como lhe
falei. Veja as catedrais góticas: quais interesses egoístas levariam os homens
a construí-las? Veja as cruzadas à Terra Santa: que interesses pessoais e
egoísticos levariam os homens a enfrentar uma guerra tão longínqua, sem
qualquer objetivo expansionista ou de riquezas? Veja também os mosteiros,
construídos em quantidade imensa: quais interesses egoístas em construir locais
de oração, onde alguns se enclausuravam durante toda a vida, no mais completo
recolhimento? E isto foi, meu caro senhor, o ponto alto da Idade Média.
- Já ouvi falar de algo assim, mas acho que
tudo não passa de lendas.
- Então leia os compêndios de História,
pesquise, procure conhecer o período
histórico de que falamos. O senhor precisa vencer sua descrença, e acreditar
pelo menos na História de seus antepassados, que não são lendas, mas fatos que
ocorreram em locais determinados com pessoas reais, e estão devidamente
documentados. Além do mais, tanto as catedrais como os mosteiros e outros
monumentos estão ainda de pé para atestar perante as gerações futuras o que foi a Idade Média na alma de nosso
povo.
- Por que continua me chamando de senhor?
- Porque assim o manda o respeito que tenho por
sua dignidade, de ser dono de si, de deter o livre arbítrio e ser livre como
deve ser todo filho de Deus. Nós nos chamamos de senhor por causa disso, e o
senhor por que me chama de você o tempo todo?
- Porque somos todos iguais e este tratamento
nos nivela, não dar a ideia de diferença e desigualdade. Nele não há destaque,
não há distinção. Você é qualquer um, é igual a outro qualquer...
- Mas, não é verdade. Nós não somos qualquer
um: somos filhos de Deus e detentores da dignidade própria desta condição. Além
do mais, não somos iguais, somos completamente diferente e desiguais uns dos
outros. Por isso, é necessário que sejamos tratados de forma diferente.
·
* * * * *
Os sinos tocam pausadamente. As badaladas vão
se sucedendo harmoniosamente, alternando sons graves e agudos de diversas
igrejas. “Não, não pode ser – pensa Rivière – estes sinos não podem estar
tocando no meio desta babilônica cidade. Estes toques me fazem lembrar meu
mundo, minha cidade, minha querida Idade Média do século XIII e não no inferno
desta babel”.
Sim, era verdade, os sinos da catedral e das
outras igrejas de Lyon estavam tangendo. Logo, Rivière percebeu que seu sonho
era um pesadelo. Levantou-se lépido da cama, pois não queria chegar atrasado à
Santa Missa. Além do mais, o duque o estava esperando como sempre, e dormira
além do normal. Ao sair, porém, na rua, ouviu certo murmúrio na praça. Eram
comuns desde algum tempo aquelas azáfamas de vendedores que vinham de outras
cidades. Um deles oferecia livros romanescos da cavalaria decadente: “O
cavaleiro que salvou a princesa da prisão do castelo!” – gritava oferecendo
seus cordéis. Era o título da obra. Alguns compravam, embora poucos soubessem
ler.
Rivière vendo tudo isso, considerou pensativo:
- E pensar que tudo começou por aí. Estou
presenciando o início do processo revolucionário em tudo o que se passa na
minha cidade, cujo apogeu acabo de contemplar num terrível sonho que tive.
Soube de notícias do movimento renascentista
que já se iniciara, uma tentativa de restaurar o mundo pagão depois que os
grandes santos e doutores da Igreja haviam sepultado no pó da História aquelas
velhas filosofias de vida que tantas misérias haviam produzido na humanidade
antiga. Depois que a Igreja havia extirpado a escravidão, depois que as
ciências, as artes, a cultura de modo geral começavam a tomar um impulso
cristão e sadio, depois, principalmente, que predominava na sociedade católica
um salutar convívio social e surgiam estudos para equacionar problemas
seculares, os homens então começaram a querer retornar ao mundo romano-helênico
e outros já decaídos.
E, aproveitando a ocasião, rezou algumas
ladainhas e rosários pelo homem do século XXI. Pois, que solução poderia dar
para problemas de tais magnitudes? Será que eles acreditariam, se lhes dissesse
que estavam caminhando para aquela confusão vista em sonhos em época tão
distante?
E o homem do século XXI? Seria ele capaz de
sonhar como seria o futuro da humanidade, sete ou oito séculos após tanta
decadência?