(Transcrevemos um pequeno conto, escrito por uma escritora católica baiana do início do século XX, onde se realça o que pode trazer para o homem o exagerado sonho de liberdade.)
O
sonho de Fulgêncio
Amélia Rodrigues
Aquele tresloucado Fulgêncio tinha fugido da
casa de seu senhor.
E, todavia, o seu senhor era bom; tão bom que
não se podia absolutamente imaginar outro ideal de senhor. Criara o servo em
seus braços, desde pequenino; tratara-o nas moléstias; dera-lhe a alegria da
infância, prados em que corresse, afetos que o confortassem; ensinara-lhe
muitas coisas úteis, letras e artes; mostrara-lhe as fontes puras da felicidade
perfeita...
Mas, apenas o servo ficou rapaz, leu ou
disse-lhe alguém que a servidão era uma coisa triste e feia e cruel, mesmo
naquelas condições honrosíssimas; sopraram-lhe aos ouvidos a palavra
“liberdade”, e essa palavra agitou-lhe os nervos, num deslumbramento contínuo.
- Foge!... quebra as cadeias! Governa-te a ti
mesmo, infeliz! Não curves a cabeça a poder algum! És dono de teu ser, de teus
sentidos, de tua vontade. Oh, que bela conquista, a independência!
Assim lhe cantara dentro do cérebro a voz da
mocidade, o sangue quente dos desejos sôfregos e, fora, a voz tentadora de
outros libertos.
Contudo, uma réstia de luz teimava em
atravessar-lhe a mente O seu olhar inquieto espraiava-se longe, examinando o
mundo.
- Ser livre!... fazer o que quiser, sem dar
contas a ninguém!... Sim, deve ser essa a felicidade completa. Posso fugir,
posso; mas... onde irei que deixe de ser servo?
Em toda parte há tiranos...
- Entrarás pelas brenhas... beberás a chama
do sol e os aromas da natureza virgem, grandiosa, embriagante. A natureza é tua
mãe, portanto deve ser a tua única senhora. No seio dela serás rei, forte como
os leões, alcandorado como as águias, dormindo embora ao relento, mas
respirando a plenos haustos a ventania dos píncaros ou a brisa meiga dos
vales...
E o servo sonhou, noites e noites mal
dormidas, com o espectro do sol da Liberdade, um espectro em forma de mulher a
sorrir, com veste de íris e largas asas de borboleta espalmadas no horizonte
sem fim... e de seus lábios espiralou um hino, um grito, apóstrofe:
- Oh Liberdade! És minha deusa, eu te adoro!
A face amorável do senhor tornou-se-lhe
odiosa; a casa parecia-lhe estreita, mesquinha, deprimente, sem futuro, sem
atrativos; a comida já não tinha sabor: os companheiros de lavoura davam-lhe
tédio, com os seus ares de calcetas imundos e simplórios...
* * *
Fugiu. Internou-se nos matagais. Comeu frutos
áureos e doces, pendurados em ramos de esmeralda. Bebeu água cristalina em rios
mansos, à sombra de cipoais em flor; embriagou-se com o sono de bromélias
ardentes ou com o cheiro capitoso das palmeiras novas; ouviu trinados de aves,
fragor de trovões, estrondo de torrentes a cair espumando prata...
E julgou-se feliz, e cantou, com voz de
stentor que atroava em penedias e vales, o hino que o seduzira:
- Oh Liberdade! És minha deusa, única! Eu te
adoro!...
* * *
Passaram os tempos – tudo passa!... - e mudou-se o cenário. Já não eram tapetes de
relva, eram seixos agudos que os seus pés encontravam. Fez-se noite no céu;
fez-se noite nos campos. Rugiam-lhe em torno panteras e tigres, de olhar
vermelho e dentes a ranger...
Alapardava-se em furnas lobregas para dormir, se dormia. Tinha fome e
sede, e já não achava nem frutos, nem água fresca rolando em pérolas na concha
azul da rocha ao seu alcance...
Deu, depois, em brejos negros, em charnecas
áridas. Mordiam-no insetos, serpentes se lhe enrolavam no corpo, asquerosas,
geladas, cortantes... A roupa lhe caíra em pedaços...
E vinha-lhe à memória um retalho de versos
lidos outrora, o diálogo entre o Lavrador e o Peregrino, do grande poeta
luso(1) que, com outros, lhe ensinara o amor à Liberdade:
O Lavrador
- Ó
Senhor tão moço, d’olhos cor d’esperança,
Ides de
caminho para algum lugar?
O Peregrino
- Vou
dar volta ao mundo...
O Lavrador
- Sem
arnês ou lança?
- Ó
Senhor tão novo, d’olhos cor d’esperança
Penas e
misérias é que ireis achar!
Quais seriam esse arnês e essa lança tão
preciosas ao combate da vida? A fé talvez?... Mas a fé, sobretudo a fé cristã,
já não fizera branca-rota? Assim lh’o tinham afirmado os companheiros de
prazer. Mesmo aquele poeta...
Não! ... a fé traz consigo a lei; a lei é uma
cadeia: não pode ser elemento da felicidade. Para ser feliz... basta ser
livre!...
E
suspirou, repetindo:
- Liberdade, és minha deusa única. Eu te adoro!
Caiu um dia, enfim, exausto, quase morto, no
fundo de paulento barranco. Lá ficou só, muito tempo. Seus amigos, os pássaros,
voavam longe; suas namoradas, as flores, perfumavam outros viandantes. A fome
era atroz, o frio era intenso... Sentia-se velho, alquebrado, incapaz de um
esforço. O desespero retorcia-lhe os membros; clarões de raiva impotente lhe
passavam nos olhos.
E gemia:
-Oh! Natureza! Não és tu minha mãe? Não foi
de ti que nasci? Por que me matas? Qual foi meu crime? Amar a liberdade?... Mas
a liberdade não é direito do homem? Teu maior e mais belo direito? Eu quis
viver com teus filhos todos, Natureza! Os filhos que ficam no teu ninho,
apegados contigo! E morro sem que tu me consoles. Mas a vida não é um dom teu,
um dom que eu devia, até o fim, aproveitar para o gozo, como os meus irmãos
animais?
E rugia, mordendo a lama, sentindo nos
membros trôpegos o contato dos vermes.
- Meus irmãos todos são felizes em ti, mãe
Natureza, quando o homem não os faz sofrer. Estes vermes que comem vasa...
estes lagartos cinzentos que moram nos troncos podres... Por que razão só o
homem, teu filho mais nobre, mais rico e perfeito, só o homem te encontra dura,
cruel, indiferente aos gritos de fome... ou de gula?... Por que razão?
Veio-lhe um calapso (2), um momento de trégua
na sua agitação. Fez-se-lhe algo de bonança no cérebro; pensou mais calmo e
recordou:
- Eu era servo. Sou servo ainda. Não há fugir
à lei que me prende. Todavia, lá em casa, era servo-filho. Aqui... sou
servo-escravo. Escravo estrangeiro... miserável... esmagado. Lá... não me faltava nada. Tinha tudo, tudo o
que podia ter com justiça e legítimo prazer. Desejei mais do que isso. A visão
da Liberdade estonteou-me. Oh, sim!...
ser livre!... Mas... livre como? Eis preso de novo, e sempre pior. Livre para
que, afinal de contas, se lá meu senhor me amava e aqui não tem quem me ame; se
lá eu tinha alimentos e aqui morro ao desamparo; se lá eu sorria inocente, aqui
choro de remorsos, sem ter quem me enxugue as lágrimas... Li outrora, no
Evangelho de Cristo, a página do Filho Pródigo. É justamente o meu caso. Ele
voltou à casa paterna. Voltarei também?... Por que não?... Meu Senhor é tão
bom! Farei um esforço para sair desta lama. Sim, bastará um esforço...
E, animado, puxou os pés que estavam presos
ao barro pegajoso. Sorriu. A recordação da casa onde vivera a infância
perpassou-lhe no pensamento, em traços fortes e consoladores.
Viu-a, toda branca, lá longe, - qual em
contos de fada, a luzinha d’oiro no cimo da montanha, dizendo ao perdido nas
trevas que em seu seio havia um abrigo. Como se lembrava!... Aqui era o pátio
vasto... os jardins cheios de angélicas; ali o milharal espigando... os
parreirais pesados de uvas... e pertinho, o lar, a chama alegre da lenha seca,
o cheiro da sopa quente após a labuta diária...
Suspirou. Olhou em torno e sentiu
repugnância. Desprendeu as mãos do paul, fraco, trêmulo, receoso, mas com
brilhos de esperança no olhar. Queria subir a montanha, entrar novamente
naquela mansão de paz e conforto.
Em seguida olhou para si mesmo e... teve
horror.
- Estou nu – murmurou – tenho a pele coberta
de escaras, chagas ainda... crostas de barro... Sinto que as pernas se me
vergam. É tarde!... É tarde... não posso...
Agachou-se no chão, desesperado.
- Ele me expulsará, por indigno. Afastará de
mim o seu rosto!... Não vou. Morrerei aqui. Pelo menos, tudo isto é meu.
Pedras, lodo, bichos nojentos, tudo é meu. Acostumei-me ao cheiro bruto destas
coisas corruptas... cheiro que outros chamam fétido e eu chamo perfume. E nisso
gozo ainda minha liberdade. Sou livre, chamo-lhes como me apraz!
Pendeu a fronte, fechou as pálpebras... e
apesar disso via ao longe, via sempre a luzinha da casa senhorial, tão meiga,
tão suave, em cima da montanha...
- Ali está o perdão, o amor, a paz... bem o
sei; não posso calar, no meu íntimo, a voz que m’o diz. Meu senhor é bom...
infinitamente bom... Que importa? Se a liberdade é a guerra, quero a guerra,
porque adoro a Liberdade!
Engalfinhou as mãos na borda de um calhau
limoso e escorregou de novo no tremedal. Sentia vertigens mórbidas... sabia que
estava louco, absolutamente louco, mas deixou-se descer...
E desceu... e a luzinha continuava a brilhar,
muito quieta, pondo um fio de ouro na escuridão ambiente, fio que vinha tocar
quase a cabeça de Fulgêncio.
Ele percebeu, e chorou.
- Meu Senhor!... Oh, meu Senhor!... tu me
chamas?... Por que te fugi?!... Onde estás?!... Anda... vem cá... ah, não!...
não venhas!... Fica em tuas alturas... Apaga essa luz... Tira-a de cima de
mim!... Não quero vê-la... não quero!...
É a razão, é a fé!... Mas aqui estou cativo em redes fatais... Agora essa luz!
E a luzinha apagou-se... e Fulgêncio
afundou-se ainda mais no barranco negro...
Extinguiu-se-lhe a consciência, a idéia da
vida moral. Engoliu vasa, e achou-a gostosa. Sentiu sanguessugas no peito e acho
delícia em suas mordeduras. E foi descendo... até que a vasa o sepultou para
sempre...
Fulgêncio,
o servo, é a alma pecadora – a alma do século de hoje.
Feita para Deus, ela foge de Deus, atraída
pela voz de sereia da falsa liberdade.
Foge de Deus para gozar à larga, e afunda-se
nos pântanos mais asquerosos; torna-se vil, e nem percebe a própria degradação,
ou percebe-a fracamente.
Coitadinha!
A luz da graça lhe aparece enfim, no cimo da
montanha da fé. É a única estrela na sua noite pesada de treva e de abandono.
Ela a vê, suavíssima; compreende-a, deseja ir até onde está a mansão salvadora,
mas o vício, o mau hábito da rebeldia a tem cativa, a ela que sonhara ser
livre, inteiramente livre!
Precisamente. Será sempre escrava, e da pior
das escravidões.
Ah! Se ela voltasse ao lar donde fugira, ao
coração de seu Senhor e de seu Pai, que feliz seria de novo!...
Almas que refulgistes ao sair do batismo
cristão e por desgraça agora estais caídas nos charcos do mal, coragem! Quebrai
os laços, desprendei-vos da lama, e subi, montanha acima, até os braços do
vosso Criador. Ele vos espera e há de receber-vos em festa e coroar-vos de
rosas imortais.
Homens do século de hoje, Fulgêncios
sequiosos de gozo e de independência, não esqueçais que a verdadeira liberdade
é a dos filhos de Deus. Procurai o reino de Deus, se quereis ser livres e
atingir o vosso alto destino.
Notas:
1) Trata-se da obra “Os Simples”, de Guerra Junqueiro.
2) “calapso” é como consta no
original; seria “colapso”?
(Transcrito de “Do Meu Archivo – Contos e
Phantasias” – Livraria Editora N. S. Auxiliadora – Salvador(BA), 1929 – págs.
208/216)