Era comum entre príncipes de certas coroas medievais as contendas, que levavam sempre a rebeliões entre si e a golpes contra irmãos e os próprios pais. Isso era ainda decorrente das origens pagãs, pois o Cristianismo vinha combatendo tais rivalidades durante séculos e com êxito em alguns países. Em alguns reinos, como o de Portugal, havia também muita concórdia e benquerença. Na casa de D. Filipa e D. João I (final do século XIV e início do século XV), a convivência era realmente original. Longe de formarem um grupo de rivais, os jovens príncipes constituíam uma sociedade de admiração mútua. Não só isso, adoravam-se uns aos outros, nunca tendo nascido entre eles qualquer vestígio de ciúmes ou invejas.
Muitos diziam que o
rei era afortunado em possuir tais filhos. Pode ler-se, observa um cronista,
"de um rei que tinha um bom filho obediente, mas ter cinco filhos - todos
obedientes - parecia bom demais para ser verdade!".
A obediência era a
virtude mais admirada por aquela geração. No entanto, os filhos eram tratados
com tanta brandura pelo pai, que um deles afirmou nunca haverem recebido dele
qualquer ferimento, açoite, ou palavra rude. A obediência dos filhos era, pois,
oriunda do amor paterno muito mais do que pelo temor ou reverência filial. Os
filhos de D. João foram criados juntos numa atmosfera glorificada pela piedade
mística de sua mãe, fortalecida pelo pai soldado e amigos guerreiros, e tornada
intelectual pela sua própria paixão pelos livros.
O mais velho dos
filhos, D. Duarte, era ponderado e erudito, talvez mais talhado para a vida
acadêmica do que para o trono. Foi o herdeiro e sucessor. Dom Henrique,
conhecido como "O Navegador", era o mais prometedor dos filhos por
sua grande capacidade e discernimento. Tal foi o seu gigantismo que se destacou
de todos os seus irmãos que, no entanto, foram brilhantes. Dom Pedro parece ter
sido o espírito orientador, mais prático do que Dom Duarte e mais prendado. Foi
mais estadista do que o irmão mais velho. Os mais novos, Dom Fernando morreu
mártir entre os mouros, e D. Isabel casou-se com o duque de Borgonha.
Dar e ouvir conselhos, uma prática de virtudes
É espantoso como as
pessoas daquele tempo gostavam de exortações. Ser aconselhado e advertido não
nos dá nenhum prazer, mas naqueles tempos uma pessoa séria não pensava assim.
Um exemplo eram as exortações que faziam entre si Dom Pedro e Dom Duarte. A
quantidade de sábios conselhos que estes dois irmãos prodigalizavam um ao outro
seria de molde a causar desuniões se ocorressem no mundo moderno. Mas este
hábito não existe somente entre estes dois irmãos, mas entre pais e filhos, e
entre os outros irmãos uns com os outros.
Necessidade
do conselho e seu papel nas instituições ocidentais
Pedir conselhos: tudo indica que era um bom costume
na idade Média, conforme narra Dr. Plínio Corrêa de Oliveira ao comentar sobre a necessidade da
devoção a Nossa Senhora do Bom Conselho:
“Nós podemos dizer que um dos frutos da Idade Média,
da Civilização Cristã, é o ter tornado bem clara essa necessidade do conselho
como uma norma de vida vigente até mesmo nas instituições civis ocidentais.
Se analisarmos a primitiva história das monarquias
pagãs do Oriente, mesmo das grandes como a do Egito, da Pérsia, da China, do Japão,
notamos que, em geral, o monarca era absoluto, tinha o poder de dispor dos seus
súditos como entendesse e quase não ouvia conselhos. De vez em quando aparecia
alguém que dava um parecer a respeito de determinada situação, mas o conselho
como uma instituição que o soberano
consultava com rotina, aquilo que nós chamamos de Conselho de Estado, não
existia. O monarca ficava no seu isolamento, resolvendo as coisas por si e
tomando as decisões.
Na Idade Média vemos aparecer a instituição do Conselho.
Reconhecendo a precariedade, a falibilidade do espírito humano, os monarcas
nomeavam Conselhos, órgãos coletivos diante dos quais o rei costumava levar
seus problemas mais importantes. Estes eram debatidos em reunião e o rei
aceitava ou não a solução proposta, mas habitualmente ele resolvia tudo com o
seu Conselho.
Essa ideia passou da monarquia para as outras formas
de governo que havia na Idade Média. As repúblicas aristocráticas governam-se
por Conselhos. Por exemplo, o famoso Conselho dos Dez de Veneza, que
assessorava o Doge e tinha um poder enorme; as repúblicas burguesas, as cidades
livres da Alemanha, eram governadas por Conselhos, sendo o burgomestre a
expressão de um Conselho eleito pela cidade. Assim foi se afirmando o princípio
de que ter um Conselho é o complemento natural de todo governo.
Pedir conselho, uma postura católica
por excelência
Mas, se os homens devem pedir conselhos uns aos
outros, se devem reconhecer que por si mesmos têm dificuldade de encontrar a
sua própria via em circunstâncias espinhosas, então é sobretudo verdade que
convém a eles, podendo se comunicar com Deus por meio da oração, que a Ele
peçam o conselho. Deve ser um dos hábitos de nossa vida espiritual, de nossa
piedade, pedirmos que Nosso Senhor nos ilumine e nos faça compreender aquilo
que devemos fazer.“[1]
Se era praticado pela elite, pelos governantes, o
hábito de ouvir conselhos também se arraigava em toda a sociedade daquele
tempo.
Como único temor o pecado
O filho mais novo de
D. Filipa, Fernando, quase lhe custou a vida, deu trabalho para nascer, e por
algum tempo mostrou poucas possibilidades de viver. No entanto, sobreviveu e
veio a se tornar num jovem sossegado e meigo, cuja "conversação angélica"
todos apreciavam. Não tendo a vitalidade dos irmãos, não tinha gosto pelos
exercícios violentos com as armas, vivia para a Religião e para os estudos.
Tinha uma "mui grande e nobre livraria" e a sua capela estava
belamente ordenada, "segundo os costumes de Salisbury". Sua divisa
era "Le bien me plait". Estes infantes meio ingleses tinham suas
divisas escritas em francês, língua da sociedade culta e aristocrática da
época.
Dom Duarte e Dom Pedro
foram os companheiros de infância de Dom Henrique, pois tinham quase a mesma
idade. Formavam um trio harmonioso, e a intimidade que ligava os dois mais
velhos parece que não melindrava o mais novo. Dom Henrique era mais reservado e
não confiava sua alma a ninguém. Dom Duarte chegou até a publicar um livro,
"Leal Conselheiro", onde falava de suas confidências e de sua
família. Dom Henrique não se prestou a escrever nada sobre si mesmo, todos seus
segredos foram levados para o túmulo.
Apesar da disparidade
de temperamento, todos os irmãos tinham cada um ânimo de soldado e nada temiam.
Sim, temiam uma única coisa, segundo nos revela o cronista Zurara, era o
pecado. Todos haviam aprendido com a mãe a cumprir todos os mandamentos da
Santa Madre Igreja e abraçavam um misticismo religioso profundo e sincero. Além
das mesmas práticas já aprendidas no convívio com a mãe, das rezas diárias e da
frequência aos sacramentos e às Missas, jejuavam costumeiramente e carregavam
consigo dolorosos cilícios, com o que venciam galhardamente as tentações.
Afastai os nossos filhos dos jogos e os metais em
trabalhos e perigos!
D.João I preparava o
exército para a primeira investida militar fora do país: iam invadir Ceuta. Nem
o rei nem a rainha se manifestavam sobre a presença dos filhos no exército. Mas
eles o desejavam. Primeiramente procuraram a mãe, para junto dela conseguir
anuência. Os astutos jovens não disseram a ela que o pai já sabia de seus
planos, mas pediram-lhe graciosamente que se servisse de sua influência junto
do rei para que lhes fosse garantido a autorização para embarcar na empresa
guerreira. Queriam ser armados cavaleiros com honras militares, como era comum
entre os medievais.
D. Filipa recebeu-os
muito bem, pois compreendia que seus filhos precisavam conquistar as esporas de
ouro com valor e heroísmo. Quando eles acabaram de falar, ela lhes respondeu:
"Bem, é verdade que vos tenho assim aquele amor que qualquer mãe deve ter
a seus filhos. Porém, tratando-se de semelhantes feitos eu nunca vos poderia
privar vossas boas vontades, antes vos ajudarei a elas com todas minhas forças e
poder". E mandou perguntar logo a Dom João se estava desocupado e a podia
receber naquele momento.
Na presença do rei,
disse: "Senhor, eu vos quero pedir uma coisa que é muito contrária para
requerer mães para filhos, porque comumente as mães pedem aos pais que afastem
seus filhos dos trabalhos e perigos, tendo sempre grande receio de quaisquer
danos que lhe possam acontecer. Eu tenho intenção de vos pedir que os afaste
dos jogos e das folganças e os metais em trabalhos e perigos. Vossos filhos e
meus vieram hoje a mim e me contaram todo o feito que tinhas passado acerca da
cidade de Ceuta, pediam que me aprouvesse a vos falar disso, e vo-lo requerer
da sua parte e da minha. Eu, Senhor, não queria por nenhuma forma, pois Deus
por sua graça quis lhes dar disposição do corpo e do entendimento, que eles por
seu trabalho falecessem de conseguir os feitos daqueles..."
O rei atendeu
benignamente ao pedido. Mas disse para a rainha que ele também tinha um pedido
a fazer: era que ela era quem deveria dar a autorização para que eles fossem
para a guerra, nisto incluindo o próprio rei. D. Filipa ficou aterrada. Não
esperava que o rei, seu esposo, lhe fizesse tal pedido. Mas como se tratava de
"serviço que seria para Deus fazer o seu santo nome ser adorado entre infiéis"
aprovou o pedido, mesmo sabendo que pai e filhos se exporiam a perigo de vida.,
Façais vossos filhos cavaleiros com espadas que
lhes darei com minha bênção
Quando os preparativos
para a partida se iniciaram, a rainha orava cotidianamente na igreja de Sacavém.
Ajoelhava-se todos os dias, de manhã cedo até o meio-dia, e depois voltava à
tarde e rezava até altas horas da noite. Sentia uma grande dor em ver partir
para a guerra seu esposo junto com os filhos, embora estivesse plenamente de
acordo.
Há muitos anos que D.
Filipa não gozava de boa saúde. Sabendo disto, Dom João evitava lhe falar da
viagem, de tal forma que ela imaginava já que haviam desistido da ideia. Um
dia, porém, o rei chega em sua presença e confirma a data da partida. A rainha
sente profundamente. De tal forma sentiu o choque que ficou abalada, provocando
o choro de suas aias. Dirigindo-se para elas, disse: "Amigas, não tendes
porque chorar, porque o choro em tais casos não é coisa que aproveite, antes
vos rogo que usemos do que nos é propício, isto é, encomendarmo-nos a Deus este
feito muito afincadamente fazendo tais obras e bens, porque merecemos ser
ouvidas, e isto é melhor que derramamento de lágrimas..."
Dirigindo-se ao rei,
seu esposo, diz: "Eu vos peço por mercê... que vos façais vossos filhos
cavaleiros na minha presença, ao tempo de vosso embarque com largas espadas que
eu lhes darei com minha bênção". Dom João prometeu alegremente, e D.
Filipa encontrou algum alívio em mandar vir de Lisboa as três mais belas
espadas que lá se pudessem fazer.
Depois, entregou-se
inteiramente às orações e ao jejum. No mesmo dia em que Dom João a deixou na
igreja, onde rezava, caiu ela doente. Todos julgavam que estava enfraquecida
por causa dos jejuns e abstinências. Quando voltaram para a armada, receberam a
notícia que fossem até à rainha com urgência. Não haviam dúvidas, era a peste.
Os dois irmãos menores foram afastados, enquanto os outros se reuniram à volta
da mãe juntamente com o pai. O pobre do rei estava aflito, cheio de dor, não
comia nem bebia, e os filhos velavam cuidando da mãe prestes a morrer, porque a
peste não tinha cura.
D. Fililpa estava
tranquila e resignada, como manda o verdadeiro espírito cristão. Não tinha
esperanças de melhora, sabia que estava chegando o seu fim. Virando-se para os
filhos, diz: "Deus sabe o tamanho desejo que tive de ver a hora em que vós
fostes armados cavaleiros, e para isso mandei fazer e guarnecer três espadas, e
pois a Deus apraz que eu neste mundo não veja tamanho prazer, ele seja louvado
por tudo". Indaga logo depois: "As espadas já estão prontas?".
Como a resposta foi negativa, disse que dessem ordens em Lisboa para que as
acabassem logo e as trouxessem.
Em seguida, a
moribunda pegou uma cruz de madeira e a partiu em quatro partes, entregando
cada uma a seu marido e aos três filhos ali presentes. No dia seguinte chegaram
as três espadas. Deu a maior a Dom Duarte, dizendo: "Meu filho, porque
Deus vos quis escolher entre vossos irmãos para serdes o herdeiro destes
reinos... eu vos dou esta espada... que vos seja espada de justiça para
regerdes os grandes e os pequenos destes reinos depois de a Deus aprouver que
sejam em vosso poder, por falecimento do rei vosso pai, e vos encomendo seus
povos, e vos rogo toda fortaleza sejais sempre sua defesa não consentindo que
lhes seja feito nenhum agravo, mas a todos cumprimento de justiça. E vedes,
filho, quando digo justiça, justiça com piedade, pois a justiça que em alguma
parte não é piedosa é chamada crueldade".
Dom Duarte ajoelhou-se
e beijou a mão da mãe, prometendo lembrar-se de suas palavras durante toda a
vida. Em seguida, a mãe chama os outros dois filhos, D. Pedro e D. Henrique,
entregando a cada um sua espada, juntamente com sua bênção: Eu vos dou esta
espada com a minha bênção com a qual vos recomendo e rogo que queirais ser
cavaleiro.
D. Filipa nunca perdeu
a lucidez enquanto a doença seguia o seu curso, e teve muito mais o que dizer
aos filhos antes de os deixar. Com a aproximação de sua morte, Dom João começou
a se inquietar e os filhos pediram que ele não assistisse o desenlace fatal. Os
filhos lamentavam que ela morresse naquele momento, quando se preparavam para
uma importante batalha, aquilo que ela mesmo tanto desejara. Ao que D. Filipa
respondeu: "Eu subirei ao alto, e do alto vos verei, e a minha doença não
turvará a vossa viagem. Partireis pela festa de Santiago".
Dom João ainda
insistiu em querer assistir os últimos momentos de sua esposa, mas foi instado
pelos seus conselheiros e por Dom Duarte que saísse. Despediu-se assim ele com
o coração partido e afastou-se a cavalo. D. Filipa ficou com seus filhos e na
presença deles morreu tranquilamente com um sorriso no rosto. A alma de uma
santa mãe subia aos céus e deixava aqui na terra os frutos de sua vida: a
gloriosa epopeia de seus filhos que abismaram o mundo.
[1]
Revista “Dr. Plínio”, n. 326, maio de 2025, pág. 21/22 – artigo “Mater Boni
Consilii – Celeste Conselheira”