quinta-feira, 5 de junho de 2025

FAMÍLIA CATÓLICA AUTÊNTICA, UMA SOCIEDADE DE ADMIRAÇÃO MÚTUA

 



Era comum entre príncipes de certas coroas medievais as contendas, que levavam sempre a rebeliões entre si e a golpes contra irmãos e os próprios pais. Isso era ainda decorrente das origens pagãs, pois o Cristianismo vinha combatendo tais rivalidades durante séculos e com êxito em alguns países. Em alguns reinos, como o de Portugal, havia também muita concórdia e benquerença. Na casa de D. Filipa e D. João I (final do século XIV e início do século XV), a convivência era realmente original. Longe de formarem um grupo de rivais, os jovens príncipes constituíam uma sociedade de admiração mútua. Não só isso, adoravam-se uns aos outros, nunca tendo nascido entre eles qualquer vestígio de ciúmes ou invejas.

Muitos diziam que o rei era afortunado em possuir tais filhos. Pode ler-se, observa um cronista, "de um rei que tinha um bom filho obediente, mas ter cinco filhos - todos obedientes - parecia bom demais para ser verdade!".

A obediência era a virtude mais admirada por aquela geração. No entanto, os filhos eram tratados com tanta brandura pelo pai, que um deles afirmou nunca haverem recebido dele qualquer ferimento, açoite, ou palavra rude. A obediência dos filhos era, pois, oriunda do amor paterno muito mais do que pelo temor ou reverência filial. Os filhos de D. João foram criados juntos numa atmosfera glorificada pela piedade mística de sua mãe, fortalecida pelo pai soldado e amigos guerreiros, e tornada intelectual pela sua própria paixão pelos livros.

O mais velho dos filhos, D. Duarte, era ponderado e erudito, talvez mais talhado para a vida acadêmica do que para o trono. Foi o herdeiro e sucessor. Dom Henrique, conhecido como "O Navegador", era o mais prometedor dos filhos por sua grande capacidade e discernimento. Tal foi o seu gigantismo que se destacou de todos os seus irmãos que, no entanto, foram brilhantes. Dom Pedro parece ter sido o espírito orientador, mais prático do que Dom Duarte e mais prendado. Foi mais estadista do que o irmão mais velho. Os mais novos, Dom Fernando morreu mártir entre os mouros, e D. Isabel casou-se com o duque de Borgonha.

 

Dar e ouvir conselhos, uma prática de virtudes

É espantoso como as pessoas daquele tempo gostavam de exortações. Ser aconselhado e advertido não nos dá nenhum prazer, mas naqueles tempos uma pessoa séria não pensava assim. Um exemplo eram as exortações que faziam entre si Dom Pedro e Dom Duarte. A quantidade de sábios conselhos que estes dois irmãos prodigalizavam um ao outro seria de molde a causar desuniões se ocorressem no mundo moderno. Mas este hábito não existe somente entre estes dois irmãos, mas entre pais e filhos, e entre os outros irmãos uns com os outros.

 

Necessidade do conselho e seu papel nas instituições ocidentais

Pedir conselhos: tudo indica que era um bom costume na idade Média, conforme narra Dr. Plínio Corrêa de Oliveira ao comentar sobre a necessidade da devoção a Nossa Senhora do Bom Conselho:

“Nós podemos dizer que um dos frutos da Idade Média, da Civilização Cristã, é o ter tornado bem clara essa necessidade do conselho como uma norma de vida vigente até mesmo nas instituições civis ocidentais.

Se analisarmos a primitiva história das monarquias pagãs do Oriente, mesmo das grandes como a do Egito, da Pérsia, da China, do Japão, notamos que, em geral, o monarca era absoluto, tinha o poder de dispor dos seus súditos como entendesse e quase não ouvia conselhos. De vez em quando aparecia alguém que dava um parecer a respeito de determinada situação, mas o conselho como uma instituição que o soberano  consultava com rotina, aquilo que nós chamamos de Conselho de Estado, não existia. O monarca ficava no seu isolamento, resolvendo as coisas por si e tomando as decisões.

Na Idade Média vemos aparecer a instituição do Conselho. Reconhecendo a precariedade, a falibilidade do espírito humano, os monarcas nomeavam Conselhos, órgãos coletivos diante dos quais o rei costumava levar seus problemas mais importantes. Estes eram debatidos em reunião e o rei aceitava ou não a solução proposta, mas habitualmente ele resolvia tudo com o seu Conselho.

Essa ideia passou da monarquia para as outras formas de governo que havia na Idade Média. As repúblicas aristocráticas governam-se por Conselhos. Por exemplo, o famoso Conselho dos Dez de Veneza, que assessorava o Doge e tinha um poder enorme; as repúblicas burguesas, as cidades livres da Alemanha, eram governadas por Conselhos, sendo o burgomestre a expressão de um Conselho eleito pela cidade. Assim foi se afirmando o princípio de que ter um Conselho é o complemento natural de todo governo.

 

Pedir conselho, uma postura católica por excelência

Mas, se os homens devem pedir conselhos uns aos outros, se devem reconhecer que por si mesmos têm dificuldade de encontrar a sua própria via em circunstâncias espinhosas, então é sobretudo verdade que convém a eles, podendo se comunicar com Deus por meio da oração, que a Ele peçam o conselho. Deve ser um dos hábitos de nossa vida espiritual, de nossa piedade, pedirmos que Nosso Senhor nos ilumine e nos faça compreender aquilo que devemos fazer.[1]

Se era praticado pela elite, pelos governantes, o hábito de ouvir conselhos também se arraigava em toda a sociedade daquele tempo.

 

Como único temor o pecado

O filho mais novo de D. Filipa, Fernando, quase lhe custou a vida, deu trabalho para nascer, e por algum tempo mostrou poucas possibilidades de viver. No entanto, sobreviveu e veio a se tornar num jovem sossegado e meigo, cuja "conversação angélica" todos apreciavam. Não tendo a vitalidade dos irmãos, não tinha gosto pelos exercícios violentos com as armas, vivia para a Religião e para os estudos. Tinha uma "mui grande e nobre livraria" e a sua capela estava belamente ordenada, "segundo os costumes de Salisbury". Sua divisa era "Le bien me plait". Estes infantes meio ingleses tinham suas divisas escritas em francês, língua da sociedade culta e aristocrática da época.

Dom Duarte e Dom Pedro foram os companheiros de infância de Dom Henrique, pois tinham quase a mesma idade. Formavam um trio harmonioso, e a intimidade que ligava os dois mais velhos parece que não melindrava o mais novo. Dom Henrique era mais reservado e não confiava sua alma a ninguém. Dom Duarte chegou até a publicar um livro, "Leal Conselheiro", onde falava de suas confidências e de sua família. Dom Henrique não se prestou a escrever nada sobre si mesmo, todos seus segredos foram levados para o túmulo.

Apesar da disparidade de temperamento, todos os irmãos tinham cada um ânimo de soldado e nada temiam. Sim, temiam uma única coisa, segundo nos revela o cronista Zurara, era o pecado. Todos haviam aprendido com a mãe a cumprir todos os mandamentos da Santa Madre Igreja e abraçavam um misticismo religioso profundo e sincero. Além das mesmas práticas já aprendidas no convívio com a mãe, das rezas diárias e da frequência aos sacramentos e às Missas, jejuavam costumeiramente e carregavam consigo dolorosos cilícios, com o que venciam galhardamente as tentações.

 

Afastai os nossos filhos dos jogos e os metais em trabalhos e perigos!

D.João I preparava o exército para a primeira investida militar fora do país: iam invadir Ceuta. Nem o rei nem a rainha se manifestavam sobre a presença dos filhos no exército. Mas eles o desejavam. Primeiramente procuraram a mãe, para junto dela conseguir anuência. Os astutos jovens não disseram a ela que o pai já sabia de seus planos, mas pediram-lhe graciosamente que se servisse de sua influência junto do rei para que lhes fosse garantido a autorização para embarcar na empresa guerreira. Queriam ser armados cavaleiros com honras militares, como era comum entre os medievais.

D. Filipa recebeu-os muito bem, pois compreendia que seus filhos precisavam conquistar as esporas de ouro com valor e heroísmo. Quando eles acabaram de falar, ela lhes respondeu: "Bem, é verdade que vos tenho assim aquele amor que qualquer mãe deve ter a seus filhos. Porém, tratando-se de semelhantes feitos eu nunca vos poderia privar vossas boas vontades, antes vos ajudarei a elas com todas minhas forças e poder". E mandou perguntar logo a Dom João se estava desocupado e a podia receber naquele momento.

Na presença do rei, disse: "Senhor, eu vos quero pedir uma coisa que é muito contrária para requerer mães para filhos, porque comumente as mães pedem aos pais que afastem seus filhos dos trabalhos e perigos, tendo sempre grande receio de quaisquer danos que lhe possam acontecer. Eu tenho intenção de vos pedir que os afaste dos jogos e das folganças e os metais em trabalhos e perigos. Vossos filhos e meus vieram hoje a mim e me contaram todo o feito que tinhas passado acerca da cidade de Ceuta, pediam que me aprouvesse a vos falar disso, e vo-lo requerer da sua parte e da minha. Eu, Senhor, não queria por nenhuma forma, pois Deus por sua graça quis lhes dar disposição do corpo e do entendimento, que eles por seu trabalho falecessem de conseguir os feitos daqueles..."

O rei atendeu benignamente ao pedido. Mas disse para a rainha que ele também tinha um pedido a fazer: era que ela era quem deveria dar a autorização para que eles fossem para a guerra, nisto incluindo o próprio rei. D. Filipa ficou aterrada. Não esperava que o rei, seu esposo, lhe fizesse tal pedido. Mas como se tratava de "serviço que seria para Deus fazer o seu santo nome ser adorado entre infiéis" aprovou o pedido, mesmo sabendo que pai e filhos se exporiam a perigo de vida.,

 

Façais vossos filhos cavaleiros com espadas que lhes darei com minha bênção

Quando os preparativos para a partida se iniciaram, a rainha orava cotidianamente na igreja de Sacavém. Ajoelhava-se todos os dias, de manhã cedo até o meio-dia, e depois voltava à tarde e rezava até altas horas da noite. Sentia uma grande dor em ver partir para a guerra seu esposo junto com os filhos, embora estivesse plenamente de acordo.

Há muitos anos que D. Filipa não gozava de boa saúde. Sabendo disto, Dom João evitava lhe falar da viagem, de tal forma que ela imaginava já que haviam desistido da ideia. Um dia, porém, o rei chega em sua presença e confirma a data da partida. A rainha sente profundamente. De tal forma sentiu o choque que ficou abalada, provocando o choro de suas aias. Dirigindo-se para elas, disse: "Amigas, não tendes porque chorar, porque o choro em tais casos não é coisa que aproveite, antes vos rogo que usemos do que nos é propício, isto é, encomendarmo-nos a Deus este feito muito afincadamente fazendo tais obras e bens, porque merecemos ser ouvidas, e isto é melhor que derramamento de lágrimas..."

Dirigindo-se ao rei, seu esposo, diz: "Eu vos peço por mercê... que vos façais vossos filhos cavaleiros na minha presença, ao tempo de vosso embarque com largas espadas que eu lhes darei com minha bênção". Dom João prometeu alegremente, e D. Filipa encontrou algum alívio em mandar vir de Lisboa as três mais belas espadas que lá se pudessem fazer.

Depois, entregou-se inteiramente às orações e ao jejum. No mesmo dia em que Dom João a deixou na igreja, onde rezava, caiu ela doente. Todos julgavam que estava enfraquecida por causa dos jejuns e abstinências. Quando voltaram para a armada, receberam a notícia que fossem até à rainha com urgência. Não haviam dúvidas, era a peste. Os dois irmãos menores foram afastados, enquanto os outros se reuniram à volta da mãe juntamente com o pai. O pobre do rei estava aflito, cheio de dor, não comia nem bebia, e os filhos velavam cuidando da mãe prestes a morrer, porque a peste não tinha cura.

D. Fililpa estava tranquila e resignada, como manda o verdadeiro espírito cristão. Não tinha esperanças de melhora, sabia que estava chegando o seu fim. Virando-se para os filhos, diz: "Deus sabe o tamanho desejo que tive de ver a hora em que vós fostes armados cavaleiros, e para isso mandei fazer e guarnecer três espadas, e pois a Deus apraz que eu neste mundo não veja tamanho prazer, ele seja louvado por tudo". Indaga logo depois: "As espadas já estão prontas?". Como a resposta foi negativa, disse que dessem ordens em Lisboa para que as acabassem logo e as trouxessem.

Em seguida, a moribunda pegou uma cruz de madeira e a partiu em quatro partes, entregando cada uma a seu marido e aos três filhos ali presentes. No dia seguinte chegaram as três espadas. Deu a maior a Dom Duarte, dizendo: "Meu filho, porque Deus vos quis escolher entre vossos irmãos para serdes o herdeiro destes reinos... eu vos dou esta espada... que vos seja espada de justiça para regerdes os grandes e os pequenos destes reinos depois de a Deus aprouver que sejam em vosso poder, por falecimento do rei vosso pai, e vos encomendo seus povos, e vos rogo toda fortaleza sejais sempre sua defesa não consentindo que lhes seja feito nenhum agravo, mas a todos cumprimento de justiça. E vedes, filho, quando digo justiça, justiça com piedade, pois a justiça que em alguma parte não é piedosa é chamada crueldade".

Dom Duarte ajoelhou-se e beijou a mão da mãe, prometendo lembrar-se de suas palavras durante toda a vida. Em seguida, a mãe chama os outros dois filhos, D. Pedro e D. Henrique, entregando a cada um sua espada, juntamente com sua bênção: Eu vos dou esta espada com a minha bênção com a qual vos recomendo e rogo que queirais ser cavaleiro.

D. Filipa nunca perdeu a lucidez enquanto a doença seguia o seu curso, e teve muito mais o que dizer aos filhos antes de os deixar. Com a aproximação de sua morte, Dom João começou a se inquietar e os filhos pediram que ele não assistisse o desenlace fatal. Os filhos lamentavam que ela morresse naquele momento, quando se preparavam para uma importante batalha, aquilo que ela mesmo tanto desejara. Ao que D. Filipa respondeu: "Eu subirei ao alto, e do alto vos verei, e a minha doença não turvará a vossa viagem. Partireis pela festa de Santiago".

Dom João ainda insistiu em querer assistir os últimos momentos de sua esposa, mas foi instado pelos seus conselheiros e por Dom Duarte que saísse. Despediu-se assim ele com o coração partido e afastou-se a cavalo. D. Filipa ficou com seus filhos e na presença deles morreu tranquilamente com um sorriso no rosto. A alma de uma santa mãe subia aos céus e deixava aqui na terra os frutos de sua vida: a gloriosa epopeia de seus filhos que abismaram o mundo.

 

 



[1] Revista “Dr. Plínio”, n. 326, maio de 2025, pág. 21/22 – artigo “Mater Boni Consilii – Celeste Conselheira”


quinta-feira, 29 de maio de 2025

UM MEDIEVAL VISITA O SÉCULO XXI

 

         








O pequeno Rivière era muito meditativo, e por amar muito a Religião e a Pátria sonhava frequentemente com as duas. Consternava-lhe ver quão decadentes viviam as pessoas: sua época, o século XIII, já era profuso em costumes e ideias revolucionárias. Na cidade em que morava as pessoas muito comumente procuravam deleitar-se com os prazeres da vida, e tudo faziam para evitar qualquer sacrifício, dureza, cruz, sofrimento. E assim, muitos riam folgadamente, passeavam despreocupadamente, viajavam a procura de aventuras e novidades e, sobretudo os jovens, tinham como objetivo de suas vidas não mais o heroísmo e sim o romantismo amoroso.

E o jovem pensava: aonde vai dar tudo isto? “Se continuarem assim – dizia -, abandonando o dever pela busca do prazer, que restará de nossa juventude? Que será de nosso futuro?”

O sacrifício, antes tido como decorrência natural do pecado original, agora passa a ser desprezado a qualquer custo: deste modo, as roupas, as modas, os costumes, as preferências de todos, tudo enfim, tendia a caminhar para a gostosura da vida. E o garoto franzia o seu semblante, dia e noite, presenciando cenas, ouvindo conversas, vendo fatos que contradiziam, embora com pouca ênfase em alguns casos, todos os princípios cristãos para os quais houvera nascido e criado.

E foi assim que, certa noite, Rivière sonhou. Era um sonho bem diferente dos que costumava ter. Foi algo muito inusitado para ele. Em seu sonho ele se encontrava num mundo completamente diferente. Achava-se num futuro bem distante de seu tempo, quase oito séculos após. Em sua época já se falava que haveria um futuro cheio de paz e tranquilidade. Mas, na realidade, o que ele presenciava de paz em seu sonho era completamente diferente do que as pessoas imaginavam em sua época. Ele ficou muito chocado com o que viu:

- Que lugar estranho! – pensava. Para que tanto rebuliço? E quantas pessoas juntas! Quanta multidão a caminhar de um lado para o outro! Por que será que estão assim reunidos andando ao léu sem destino? Não vejo ninguém chamando-os para alguma batalha, nem tampouco para alguma peregrinação religiosa, e no entanto eles andam com pressa, embora sem rumo e sem um objetivo definido...

Repentinamente foi abordado por alguém que o observava:

- Olá, rapaz! Não está sentindo calor? Ou está vindo do frio?

- Calor? Que calor? Nós geralmente sentimos muito calor quando estamos empenhados numa batalha – sentimos o calor da luta. A que calor está se referindo?

- O calor do tempo, ora essa! Não ver que o sol está a pino? Por que não tira estas roupas pesadas? Refresque-se!

- Refrescar-me? Em minha terra nós nos refrescamos quando estamos cansados após dura batalha ou renhido trabalho, mas neste caso entramos em casa e nos recostamos a um leito.

- Não me diga que em sua terra as pessoas usam estas roupas pesadonas em pleno verão, suando deste jeito... é verdade? Se for assim, de que terra você veio?

- Olhe, amigo, antes do desconforto do meu corpo está a paz de minha alma, e porque a prezo muito é que procuro vestir-me dignamente; quanto ao corpo, porém, não é verdade que estou suando mais do que o senhor, nem tampouco sentindo mais calor...

- Pode chamar-me de você mesmo, pois eu não sou senhor. Quero ver você provar o que disse: como posso estar suando ou sentindo mais calor que você se uso roupa leve e fina?

- É simples: o calor não vem diretamente para o meu corpo, pois o mesmo está protegido pela roupa. Quanto ao senhor, verifique que nos lugares onde a roupa não cobre, ou protege menos, o suor é mais intenso. Se quer um exemplo melhor, veja aquele palacete quadrado ali defronte, onde várias pessoas estão vestidas apenas com alguns trapos e sendo servidas por alguns lacaios muito bem vestidos. Veja... ali em frente, senhor.

- Já disse que não sou nenhum senhor. Chame-me apenas de você. Estava se referindo àquele hotel quando mencionou “palacete quadrado”? As pessoas ali que você diz usarem trapos nós chamamos de turistas e o que denomina de “lacaios” nada mais são do que os garçons que os estão servindo.

- Turistas? Garçons? O que vem a ser isso?

- Ah, que ignorância! Turistas são estas pessoas que vivem viajando e se hospedando em hotéis, isto é, hospedarias, com piscinas e outras diversões. E garçons são estes homens que lhe servem bebidas e comidas enquanto se divertem. Vamos lá, que quer dizer sobre o calor que estão passando ali?

- Não importa como são chamados, pois, na realidade trata-se de lacaios servindo a seus senhores. Veja que os chamados “garçons” estão todos bem vestidos, com roupas “pesadas” como falou, alguns até de gravatas, enquanto que os “turistas” estão vestidos apenas com alguns trapos de panos. No entanto, não se vê um só garçom com calor e suando, enquanto entre os turistas há alguns que até estão se abanando de tanto calor.

- Nunca tinha notado isso. Como se explica?

- É que o calor vem direto para o corpo dos mal vestidos, que estão sem a proteção das roupas, enquanto que os garçons têm o corpo protegido pela roupa e sofrem menos os efeitos do tempo. Afinal, como se chama o senhor?

- Por que teima em chamar-me de senhor?  Veja que não sou tão velho assim. Para nós o termo senhor significa velhice, decadência, enquanto “você” é um tratamento mais igualitário e denota juventude. Deixemos isso de lado. Diga-me de onde veio e seu nome.

- Meu nome é Rivière: como vê sou jovem ainda, mas mesmo assim já estou me preparando para ser armado cavaleiro pelo meu senhor, o grande duque de Lyon. Venho sendo adestrado há bastante tempo pelo duque. Por enquanto estou sendo apenas seu pajem, mas ele me prometeu...

Rivière foi interrompido por uma estrepitosa gargalhada. Após breve silêncio, o estranho falou:

- Pois meu nome é Estrofe do Pé Quadrado e tudo o que você está dizendo bem demonstra sua insanidade mental. É pena, tão jovem e já um tanto desmiolado...

- Ah,é? Pois fale-me um pouco do senhor: quem é, de onde veio, o que faz aqui e o que pretende na vida em seu futuro.

- Apesar de não gostar que me chame de senhor, pois isto me aborrece, vou lhe falar um pouco de minha pessoa. Como disse, meu nome é Estrofe do Pé Quadrado, um nome estranho realmente mas muito do agrado de meu pai, que era poeta: como nasci aleijado deste pé esquerdo, ele por ironia e irreverência colocou-me tal nome. Hoje em dia, é bom que saiba, as pessoas usam muito de ironia e irreverência.

- Que horror! Ironia e irreverência – que absurdo!

- Por que se espanta? Saiba que vivemos numa época em que tudo caminha para a irreverência. E a ironia também está muito em voga. Como é lá na sua terra?

- Pois em minha terra, ou em meu tempo, os nomes das pessoas são postos conforme determinadas tradições religiosas ou de família, geralmente em homenagem a santos nossos protetores. Ao contrário, nós primamos pela reverência e respeito ás pessoas. Respeitamos muito a dignidade da pessoa humana. Por isso o tenho chamado de senhor.

- Pelo que vejo você não é deste mundo: onde nasceu? Em que época?

- Como já disse, sou de Lyon, França. Nasci em 1294, portanto, no final da Idade Média.

- Vou acreditar no que diz, somente para ver até onde quer chegar. Sendo assim, encontramo-nos, eu e você, nesta movimentadíssima avenida de Nova Yorque, conversando sobre nossas terras ou nossas eras históricas, sendo eu deste século XXI e você da Idade Média – uma diferença de quase oito séculos. Na realidade, estou aqui de passagem.

- Turista também?

- Um pouco de turista, mas muito mais de comerciante, pois venho sempre aqui fazer compras.

- Nasceu em que país?

- Sou brasileiro, nasci em São Paulo. Aqui estou a negócios, e você?

- Não sei como cheguei até aqui. Tudo é muito estranho, estou confuso e perplexo. Não entendo certas coisas que estou presenciando. Por exemplo, o que são aqueles bólides luminosos andando sobre caminhos negros lá embaixo?

- São veículos, espécie de carruagens de seu tempo, mas movidos por si mesmo, que chamamos de automóveis. As estradas negras chamamos de auto-estradas, e a cor escura é devida ao breu ou asfalto de que são feitas.

- E naquelas ruas,  para que tantas cordas esticadas naqueles postes?

- São fios elétricos. Através deles corre energia elétrica para acender as luzes e mover as máquinas e aparelhos elétricos em geral.

- E por que as pessoas andam assim tão confusamente pelas ruas? Veja quanta multidão andando ao léu sem destino... quanta balbúrdia, e como se vestem de maneira ridícula!

- As pessoas que você vê estão andando pelas calçadas, pois se andarem pelas ruas podem ser atropeladas pelos carros. Quanto às roupas,  não vejo nada de ridículo nas que as pessoas estão vestidas hoje em dia: ridículo está você aí com este jaquetão grosseiro!  As roupas modernas são leves, alegres, poucas pra não fazer calor, a fim de que as pessoas se sintam mais á vontade e livres, acabando com aquela ideia de sufoco que havia antigamente. O importante é a liberdade, que começa pelos movimentos do corpo.

- Mesmo que esta liberdade leve a pessoa para a imoralidade?

- Imoralidade? Nós não sabemos mais o que é isso: há muito tempo que não existe mais moral em nosso mundo.

- Não sei como pode haver uma sociedade onde não haja respeito pela moral. Como é, então, o relacionamento entre as pessoas? Há dignidade? Existem leis superiores para serem cumpridas e manter a paz? Há também alguns costumes que levem as pessoas a um mútuo respeito? Tanta liberdade não acaba suprimindo alguns direitos como, por exemplo, o da privacidade?

- Chega de tanta pergunta. Estou gostando agora mais da conversa porque esqueceu-se de chamar-me de senhor. Vamos em frente. Nós baseamos nossa convivência social, meu rapaz, apenas na luta pela sobrevivência. Ou então, pelo dinheiro, ou pela posição social. Somente isto faz com que as pessoas andem se respeitando uns aos outros. Por causa da posição social respeita-se o delegado, o juiz, o prefeito, o governador; por causa do dinheiro respeita-se o gerente de banco, o financista e o homem de negócios, como o comerciante ou o industrial. A dignidade só existe para quem tem dinheiro e posição social. E todos assim gozam de liberdade, vivendo somente para este fim: a luta pela sobrevivência.

- Ah! Agora entendo porque não quer que o chame de senhor. Neste seu mundo quem não possui dinheiro e posição social torna-se um pária. Não há respeito pelos pobres. Onde está a dignidade do homem como filho de Deus? Meu Deus, que horror!

- É o século XXI, meu chapa! Nós vivemos hoje a lei da selva: não a selva da floresta, mas a selva de pedra das grandes cidades, onde tudo converge para esta luta de que lhe falei. Quem não vencer neste mundo fará parte da escória e para este nossa sociedade tem reservado apenas alguns. cortiços, certas favelas, um submundo terrível, pois não há outra saída. Quanto aos demais, os que conseguirem se superar e vencer na vida, gozarão felizes a doçura do “bom viver”, com automóveis e aviões de luxo, viagens turísticas, luxuosos hotéis de veraneio e clubes com piscinas super-confortáveis. É a vida, meu caro! Alguns têm que penar para outros gozar!

- Como é triste teu mundo.

- Triste? Você está louco! Dê uma olhada nestas ruas e veja quantas casas de diversões e entretenimento irá encontrar. Aposto em que em sua terra, ou em seu tempo, nada disso havia.

- Não vejo tais diversões como fruto de uma verdadeira alegria. Não acredito que depois de tanto frenesi as pessoas não se sintam com a consciência pesada.

- Como é que a consciência pode ficar pesada?

- Pode ficar pesada e doer, sabendo-se que o resto do mundo pena muitas misérias e  há muita injustiças a corrigir, enquanto se diverte e se goza a vida de uma forma assim tão despreocupadamente.

- Não, meu caro, nós não temos problemas de consciência. Encontramos na vida moderna vários recursos com que possamos abafar a consciência. Procuramos sempre a fuga da dor, principalmente disso que se chama “dor da consciência”.

- Como é feito isso?

- Simplesmente não nos preocupamos com os outros! É cada um por si. E agindo assim não há como a consciência possa doer, ela parece nem sequer estar viva.

- Entendo. Gostaria de deixar patente, no entanto, que isto não lhes traz uma autêntica alegria. Não pode ser autêntica uma alegria que procura abafar a consciência ao ponto de deixá-la quase morta. A verdadeira alegria está no interior de cada um, onde deve morar com toda a força nossa consciência. Só pode ser verdadeira e autêntica esta alegria quando, ao nos divertirmos, a justiça, a paz e a união campearem ao nosso redor. Se o homem se diverte e goza, mas seus irmãos tudo sofrem, esta alegria é falsa. Mais ainda se a consciência não desperta e não lhe chama a atenção para a realidade que o cerca.

De repente, ambos percebem que há uma grande discussão numa rua onde se aglomerava pequena multidão. Perguntaram a um transeunte, tendo o mesmo dito que se tratava de um problema corriqueiro, uma briga por causa do lugar na fila.

- Como é isso? – pergunta Rivière – uma briga por causa de lugar na fila?

- Sim, isso ocorre com frequência hoje em dia. O sujeito está numa fila qualquer, ou para fazer uma compra, ou para ser atendido num banco, ou mesmo para embarcar num transporte, e de repente alguém “fura” a fila, isto é, passa na frente do outro. E daí surge a briga, pois o que está na frente não suporta ver o outro lhe passar na frente. É assim também na sociedade, de um modo geral, pois ninguém suporta ver outro passar na sua frente, e muita gente briga por causa disso.

- Mas, brigar por causa de um lugar numa fila?

- Sim, é um direito de quem estar na fila ter seu lugar respeitado – se alguém entra na frente está ferindo um direito...

- Oh mas que direito mais bobo? Como é que se briga por causa de uma coisa tão banal?

- No seu tempo ninguém brigava na fila?

- Não era costume haver filas no meu tempo, a não ser para se receber a Sagrada Comunhão, na Santa Missa. E aí, o normal é o contrário: as pessoas fazem questão de ceder seu lugar a outras.  Trata-se de um direito tão secundário, tão pequeno, que a gente pode ceder a outro sem qualquer dificuldade. Aliás, aprendemos que ser educado consiste exatamente em ceder alguns pequenos direitos nossos a outras pessoas. Se causam incômodos é para que nos acostumemos com eles.

- Já vi que você é um filósofo. Mas nosso mundo não vive mais de filosofia. Voltando ao assunto anterior, diga-me, como é que as pessoas se divertiam em seu tempo?

- Era algo muito diferente do que chamam hoje de diversão. Tínhamos naquele tempo cavalgadas, caçadas, jogos de armas, todo e qualquer passatempo era feito para aperfeiçoar o caráter das pessoas. Tudo era muito honesto e tão natural que a alegria se externava espontaneamente.

- Dir-lhe-ei o mesmo: como poderia ser verdadeira esta alegria em seu tempo se haviam guerras, injustiças praticadas pelos nobres, violência contra os pobres, etc?

- Era verdadeira nossa alegria porque a paz campeava em toda a sociedade e a justiça era aplicada em todo o corpo social. Haviam temporários rompimentos de paz, haviam alguns princípios de justiça feridos, mas logo, logo, eram corrigidos e reparados, pois haviam mecanismos sociais para reparar todos estes males, que sempre ocorrem entre os homens. Enquanto seu mundo é voltado para dentro de cada um, completamente egoísta, sem pensar senão no gozo e no prazer pessoal, o nosso, pelo contrário, tinha filosofia de vida completamente contrária: praticamos a caridade, amamos ao próximo como a nós mesmos e por amor a Deus, vivemos da abnegação e do sacrifício, temos cavaleiros que vivem para a proteção dos mais fracos, os pobres, os órfãos e as viúvas, nos preocupamos mais com a felicidade dos outros do que com a nossa. E isto nos torna mais felizes ainda.

- Pode ser verdade, mas não acredito no que diz. Não acreditamos, homens do século XXI, mais em ninguém. Para nós todos os homens são egoístas, interesseiros e ladrões. Todos são filhos do pecado e aqui pecam, alguns secretamente, os hipócritas, e outros abertamente, os sinceros. Não acreditamos mais em honestidade, em abnegação desinteressada, coisas do tipo amor ao próximo, não acreditamos mais em virgindade, etc. Pergunte por aí e não vai encontrar mais nenhum rapaz ou moça que saiba o que é castidade.

- Volto a repetir: como é triste o teu mundo! Nunca imaginaríamos que a busca desenfreada do prazer levasse o homem a tal decadência.

- Pois é: assim como não acreditamos no homem de nosso tempo, também não acreditamos no do seu. Acho que não é verdade que as pessoas de sua época eram abnegadas, desinteressadas, como dissestes. Pelo contrário, acho que eram todas interesseiras, egoístas e exploradoras umas das outras. Foi por causa delas que chegamos ao grau de miséria humana ainda existente no mundo atual.

- Seria impossível a construção da Civilização Cristã, palpitante na época medieval, sem que houvessem homens assim como lhe falei. Veja as catedrais góticas: quais interesses egoístas levariam os homens a construí-las? Veja as cruzadas à Terra Santa: que interesses pessoais e egoísticos levariam os homens a enfrentar uma guerra tão longínqua, sem qualquer objetivo expansionista ou de riquezas? Veja também os mosteiros, construídos em quantidade imensa: quais interesses egoístas em construir locais de oração, onde alguns se enclausuravam durante toda a vida, no mais completo recolhimento? E isto foi, meu caro senhor, o ponto alto da Idade Média.

- Já ouvi falar de algo assim, mas acho que tudo não passa de lendas.

- Então leia os compêndios de História, pesquise, procure conhecer o  período histórico de que falamos. O senhor precisa vencer sua descrença, e acreditar pelo menos na História de seus antepassados, que não são lendas, mas fatos que ocorreram em locais determinados com pessoas reais, e estão devidamente documentados. Além do mais, tanto as catedrais como os mosteiros e outros monumentos estão ainda de pé para atestar perante as gerações futuras  o que foi a Idade Média na alma de nosso povo.

- Por que continua me chamando de senhor?

- Porque assim o manda o respeito que tenho por sua dignidade, de ser dono de si, de deter o livre arbítrio e ser livre como deve ser todo filho de Deus. Nós nos chamamos de senhor por causa disso, e o senhor por que me chama de você o tempo todo?

- Porque somos todos iguais e este tratamento nos nivela, não dar a ideia de diferença e desigualdade. Nele não há destaque, não há distinção. Você é qualquer um, é igual a outro qualquer...

- Mas, não é verdade. Nós não somos qualquer um: somos filhos de Deus e detentores da dignidade própria desta condição. Além do mais, não somos iguais, somos completamente diferente e desiguais uns dos outros. Por isso, é necessário que sejamos tratados de forma diferente.

 

·                     *                      *                      *                      *                       *

 

 

 

Os sinos tocam pausadamente. As badaladas vão se sucedendo harmoniosamente, alternando sons graves e agudos de diversas igrejas. “Não, não pode ser – pensa Rivière – estes sinos não podem estar tocando no meio desta babilônica cidade. Estes toques me fazem lembrar meu mundo, minha cidade, minha querida Idade Média do século XIII e não no inferno desta babel”.

Sim, era verdade, os sinos da catedral e das outras igrejas de Lyon estavam tangendo. Logo, Rivière percebeu que seu sonho era um pesadelo. Levantou-se lépido da cama, pois não queria chegar atrasado à Santa Missa. Além do mais, o duque o estava esperando como sempre, e dormira além do normal. Ao sair, porém, na rua, ouviu certo murmúrio na praça. Eram comuns desde algum tempo aquelas azáfamas de vendedores que vinham de outras cidades. Um deles oferecia livros romanescos da cavalaria decadente: “O cavaleiro que salvou a princesa da prisão do castelo!” – gritava oferecendo seus cordéis. Era o título da obra. Alguns compravam, embora poucos soubessem ler.

Rivière vendo tudo isso, considerou pensativo:

- E pensar que tudo começou por aí. Estou presenciando o início do processo revolucionário em tudo o que se passa na minha cidade, cujo apogeu acabo de contemplar num terrível sonho que tive.

Soube de notícias do movimento renascentista que já se iniciara, uma tentativa de restaurar o mundo pagão depois que os grandes santos e doutores da Igreja haviam sepultado no pó da História aquelas velhas filosofias de vida que tantas misérias haviam produzido na humanidade antiga. Depois que a Igreja havia extirpado a escravidão, depois que as ciências, as artes, a cultura de modo geral começavam a tomar um impulso cristão e sadio, depois, principalmente, que predominava na sociedade católica um salutar convívio social e surgiam estudos para equacionar problemas seculares, os homens então começaram a querer retornar ao mundo romano-helênico e outros já decaídos.

E, aproveitando a ocasião, rezou algumas ladainhas e rosários pelo homem do século XXI. Pois, que solução poderia dar para problemas de tais magnitudes? Será que eles acreditariam, se lhes dissesse que estavam caminhando para aquela confusão vista em sonhos em época tão distante?

E o homem do século XXI? Seria ele capaz de sonhar como seria o futuro da humanidade, sete ou oito séculos após tanta decadência?

 

 (Extraído de "Choque de mentalidades" - págs. 136/142 - obra que contém contos inéditos de minha autoria sob temas contrarrevolucionários)

terça-feira, 20 de maio de 2025

COMO SERIA HOJE UM REGIME COMUNISTA?

 


Desde que surgiu o primeiro regime dito comunista, na Rússia, em 1917, ficou arraigado na opinião pública de que o mesmo se constitui no completo domínio do Estado sobre toda a sociedade. As denominações podem variar, como, por exemplo, socialismo de estado, capitalismo de estado, república sindicalista, etc. Mas, no fundo, trata-se do mesmo sistema em que o Estado se arroga o direito de controlar completamente a vida dos cidadãos. Deste modo, não há muita diferença entre socialismo, comunismo, nazismo e fascismo, pois todos estes regimes têm a mesma característica de impor o poder estatal sobre toda a sociedade. 

É nesse sentido que diz-se hoje que estamos vivendo num regime de “comunismo difuso”, isto é, não é um regime de partido político que domina o poder estatal, mas onde as leis nos conduzem a tal preponderância. E não é só no Brasil, isso ocorre em todo o mundo. Todos os Estados modernos existem com legislações controladoras do Estado sobre a sociedade. Foi nesse sentido que Nossa Senhora disse em Fátima: “A Rússia espalhará seus erros pelo mundo”. Em 1917 a Rússia não representava nada perante o mundo, mas Nossa Senhora já previra o que ocorreria futuramente quando as nações copiassem suas leis nesse principio do poder estatal. Não quer dizer que o Estado não deva ter certo controle, mas a forma que se faz hoje em dia, dando ao Estado poderes absolutos sobre todo o corpo social, esmagando e sufocando todas as outras organizações da sociedade, torna-o ditatorial e ilegítimo.

E qual é a forma correta do Estado gerir a sociedade? Trata-se de usar um princípio defendido pela Igreja, através de vários documentos dos Papas, que chama-se “princípio de subsidiariedade”. Isso quer dizer o quê? Quer dizer que o Estado dirige, orienta, legisla, mas respeitando toda a gama de sociedades que existem abaixo dele, sem sufocar seus poderes. E este sistema dirigista estatal já consta em toda constituição moderna. Por exemplo, lá se diz que “compete ao Estado dar saúde e educação a todos os cidadãos”. Esta afirmação, como muitas outras, dá a impressão de que mais ninguém tem essa obrigação. Ora, a saúde é de responsabilidade em primeiro lugar do próprio indivíduo em particular, que deve se cuidar e procurar o médico quando adoecer; não conseguindo fazê-lo sozinho buscar o amparo de seus familiares; também aí não encontrando solução para seu problema, deve procurar uma organização maior, que é sua comunidade, seus amigos, seus vizinhos ou a autoridade municipal que lhe está mais próximo. Somente em ultimo caso é que o sujeito deve procurar os poderes públicos para solucionar seu problema de saúde. O mesmo diga-se com a educação e outros direitos fundamentais. 

E hoje os Estados modernos agem assim? Não. As constituições modernas concedem ao poder estatal poderes extraordinários para gerir todo o corpo social, intervindo arbitrariamente em tudo sob o argumento do bem comum. E essa mentalidade intervencionista não é própria apenas dos governos federais que regem as nações, ela domina completamente os governadores de estados e províncias e os prefeitos, tanto das capitais quanto de qualquer  cidadezinha do interior, seja do Brasil seja de qualquer país do mundo. Digo mais: essa mentalidade contaminou todo o corpo social e a maioria já se acostumou a esperar do governo favores, vantagens ou o cumprimento de alguns direitos, sem fazer ele mesmo esforços para consegui-lo. Competiria ao Estado, segundo essa mentalidade, dar tudo, resolver tudo, controlar tudo.

Vejamos o exemplo de como agiram no combate à pandemia do covid que grassou no mundo. Não há um só país do mundo em que as medidas tomadas por autoridades, seja locais ou nacionais,  não tenham sido baseadas no poder absoluto do  Estado sobre os indivíduos e sob alegação do bem comum. O bem comum, no caso, é proteger as populações contra a propagação da doença. Mas, a própria população não foi orientada a se defender? Se foi como se explicar ações restritivas e punitivas? Trata-se da exorbitância do poder estatal sobre os indivíduos, sobre as famílias e sobre as comunidades que ficam abaixo do poder estatal. Trata-se apenas da afirmação de um princípio de poder civil, pelo qual o Estado é superior a tudo e pode até suprimir direitos elementares, caso julgue necessário, para cumprir o que ele mesmo julga ser a defesa do bem comum. 

Nesse sentido, os erros da Rússia dominam toda a terra. E talvez tenha sido com base nessa forma de governar que Nossa Senhora tenha dito em Pesqueira (PE), ao aparecer a uma pobre lavradora, no ano de 1936, que o comunismo dominaria o Brasil, mas por pouco tempo. Não, não é o PC que toma conta do poder, mas uma idéia que vem dele que é essa supremacia do poder estatal esmagando e se impondo sobre toda a sociedade. 

Analisando os últimos acontecimentos ocorridos no Brasil, desde a pequena cidade do mais pobre interior até a capital mais rica que é São Paulo, não é essa mentalidade que predomina entre os que dirigem o nosso país, não é isso que consta em nossas leis ou medidas tomadas pelos legisladores no calar da noite?

sábado, 10 de maio de 2025

MÃE DO BOM CONSELHO VEM AO BRASIL ATRAVÉS DE UM ANJO

 

 





O Padre José de Campos Lara, natural de Itu, São Paulo, era jesuíta e acompanhou o drama que se passou com seus irmãos na Companhia de Jesus quando foi perseguida e fechada no século XVIII. No ano de 1785, passeava certo dia meditando numa praia deserta, quando de repente se deparou com um jovem portando um quadro de Nossa Senhora do Bom Conselho.  O jovem se aproximou do padre e ofereceu-lhe o quadro, pintado a óleo, dizendo que o levasse para o Brasil, pois no lugar onde Nossa Senhora fosse venerada através daquele quadro surgiria um grande colégio jesuíta.

Perplexo, o Padre José começou a argumentar para o jovem que não tinha recursos para fazer a viagem. O jovem lhe disse que havia um navio naquelas proximidades, cujo comandante o deixaria viajar gratuitamente até o Brasil. O padre ficou consolado com a notícia dada pelo jovem, e também pelo fato de se oferecer a oportunidade de construir um colégio jesuíta em Itu, haja vista que a Companhia de Jesus estando extinta a construção de tal colégio significava o seu retorno à atividade.  Mas, ao tentar agradecer ao estranho jovem, este misteriosamente desapareceu. Notando que se tratava de um Anjo, o padre foi confiante procurar o referido navio, onde achou gratuitamente passagem até o Brasil como lhe dissera o Anjo.

A restauração da Companhia de Jesus e a construção do colégio em Itu só se cumpriram porém após a morte do Pe. José, mais de oitenta anos depois da aparição do Anjo. (Extraído do livro “Mater Boni Consilii” – de João S. Clá Dias, pág 67 a 82.)

terça-feira, 6 de maio de 2025

NA OBEDIÊNCIA SE ENCONTRA A FINA PONTA DO EXERCÍCIO DA LIBERDADE

 

                                                         (Dr. Plínio Corrêa de Oliveira)




Se é verdade que a liberdade para mim consiste em que os bons movimentos que brotam de mim, ora pela ação da natureza, ora pela ação da graça, cheguem a seu termo normal, como esses movimentos são sempre de acordo com os Mandamentos, acontece que, quando obedeço aos Mandamentos, exerço minha liberdade. Nesta perspectiva, a plenitude da liberdade é idêntica a obedecer.

Entretanto, na minha liberdade vejo que sou concebido no pecado original. E que eu conheço o suficiente a respeito do bem para saber que é mais amplo do que minha mentalidade pode abarcar, de maneira que algo eu vejo e algo não vejo. Logo, eu devo me apoiar em quem vê. Assim, minha liberdade consiste em procurar quem vê e pedir-lhe que me leve, que me esclareça para eu andar.

Conformando meu modo de ver ao daquele que me explica, que me persuade e que eu vejo que vê mais do que eu e que, portanto, devo seguir, embora eu não compreenda, eu obedeço. Mas, no fundo, exerço minha liberdade, porque sigo aquele caminho que devo querer seguir e que há de levar a bom termo os bons movimentos de minha alma.

Por fim, há um terceiro modo de liberdade. Quando vários querem fazer uma obra, está na natureza das coisas que haja um que mande, porque do contrário a obra não se faz.  Isso era assim mesmo antes do pecado original e é um ponto aceito pelos teólogos unanimemente. Se Adão e Eva não tivessem pecado, teria havido governo, teria havido estados, teria havido nações, teria havido uma organização incomparavelmente mais perfeita do que a atual, mas com uma autoridade.

Por que eu, obedecendo à autoridade, que eventualmente pode até ver menos do que eu, mas que é autoridade, exerço minha liberdade? É porque se eu quero que as coisas estejam em ordem, eu hei de compreender que há de haver uma autoridade que possivelmente veja menos do que eu, mas que mande. E eu farei o que a autoridade manda.

De maneira que continuamente, segundo a Doutrina Católica, o exercício da obediência é o exercício da fina ponta da liberdade. E a dignidade do homem não consiste, como diz a Revolução, em não obedecer, mas em obedecer a quem se deve.

(Extraído da Revista “Dr. Plínio”, edição de março de 2025, pág. 17, numa conferência de Dr. Plínio Corrêa de Oliveira sobre os Novíssimos do Homem, abordando o Céu e a ressurreição dos corpos)

Em outra oportunidade, a liberdade quando é vista num direito, Dr. Plínio defende que esse direito é de fazer o bem. Não tem sentido, portanto, certo ‘direito” de ter liberdade de fazer tudo o que desejar, inclusive o mal.

 

“O DIREITO DE FAZER O BEM”



Plínio Corrêa de Oliveira

É o momento de dizer uma palavra sobre a livre iniciativa.
Tanto se fala, em nossos dias, da liberdade individual, consequência natural da condição de ente dotado de alma e corpo, de inteligência, vontade e sensibilidade, como é o homem.

Infelizmente, contudo, o zelo por essa liberdade se aplica cada vez mais em restringir o poder do Estado na repressão da imoralidade, do vício e do crime. Vivemos, por exemplo, na era da anarquia penitenciária, do que fatos ocorridos recentemente no Brasil dão exemplos consternadores.

Porém, os zelotes[3] da liberdade dão cada vez menos mostras de seu empenho em defender as legítimas liberdades do homem de bem contra essa ação do Estado, ora invasora quase até as raias do totalitarismo, ora omissa quase até as raias da anarquia. Assim, a proibição de uma peça de teatro imoral pode dar ocasião a que se desencadeie contra o Governo um verdadeiro estrondo publicitário. E a eventual atuação da polícia contra piquetes grevistas pode ocasionar algo análogo. Tudo em nome da liberdade.
De maneira que propagar no palco o vício ou o crime seria um “direito humano”. Usar de violência para impedir a colegas que trabalhem honestamente no sustento do lar, também seria um “direito humano”.

Ora, a liberdade do homem consiste essencialmente no direito de fazer o bem.

Por disposição divina, o homem tem necessidades a enfrentar nesta vida, mas ao mesmo tempo é dotado de recursos para prover essas necessidades. Os problemas de cada homem devem ser resolvidos antes de tudo por ele mesmo, isto é, com a utilização de seus dotes de corpo e muito principalmente dos de alma. O direito de utilizar em favor de si mesmo sua própria inteligência, os recursos de sua própria sensibilidade - nisso consiste a livre iniciativa. Negá-la, mutilá-la, criar-lhes entraves usurpatórios, é tratar o homem parcial ou inteiramente como coisa, como objeto inanimado.

Nos casos em que o homem se encontre legitimamente impedido de prover por si as próprias necessidades, é natural que ele recorra à ação supletiva do grupo social que lhe é mais próximo, ou seja, a família.

Quando a ação subsidiária da família se verifica legitimamente insuficiente, pode o homem recorrer a outros grupos menos próximos, como associações profissionais, caritativas, etc.

Na eventualidade de mesmo então não encontrar a ajuda necessária, está o homem no direito de recorrer, também subsidiariamente, à ação do grande grupo que sobrepaira a todos os outros, e na mais alta instância o protege: o Estado.

O princípio de subsidiariedade, assim descrito, situa a livre iniciativa no âmago de um conjunto de círculos concêntricos sucessivamente destinados a ajudá-la.

É ela exatamente o oposto do coletivismo, que se propõe a estancá-la.

Com efeito, o Estado coletivista impede toda iniciativa individual, suprime a família e os demais grupos intermediários entre o indivíduo e o Estado, e enfeixa tudo nas mãos do Poder Público, dotado, para dominar a cada qual, do cetro da propaganda monopolizada, e da terrível chibata da perseguição policial.
Em consequência dos princípios enunciados, o Governo deveria demonstrar ao povo que, de fato, nas condições atuais do Brasil, o direito natural imprescritível do homem ou do bem comum nacional exigem a reforma agrária.

Tal demonstração ela a deveria fazer em duas ordens de ideias:

a) Na linha da justiça, provando que a atual estrutura fundiária do País é injusta;

b) Na linha do bem comum social e econômico, demonstrando que a atual situação fundiária é contrária ao interesse coletivo, porque não produz suficientemente.

Mas para isto seria indispensável que ele exibisse a argumentação doutrinariamente correspondente, bem como estatísticas, pesquisas, análises e relatórios em abundância, para que o povo pudesse formar seu juízo sobre a matéria. Porém, nada disso fez ele.

 (“Última Hora”, 01 de novembro de 1985)

 Veja nossa postagem de sábado, 9 de maio de 2009, mais completa sobre o tema: https://quodlibeta.blogspot.com/2009/05/o-verdadeiro-sentido-das-palavras.html