terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Minhas origens (VI)

Dois “sem-terra” autênticos a serviço de um mau patrão

Diz o vaqueiro: patrão,
eu lhe peço pelo nome
de Deus que vossa excelência
conta de seu gado tome
que eu vou partir pra não ver
seu gado morrer de fome
(“Manuel S. Sobrinho, “Poético Popular do Nordeste”)

Em 1931 ainda morávamos na Passagem Limpa, naquele ano o inverno foi muito fraco, não houve quase safra nem pastagem para os animais, estávamos pelo mês de outubro, possuíamos legumes para comer, mas nada tínhamos para fazer. Foi aí que eu e Chico Barros, que era mais ou menos da minha idade, fomos convidados a trabalhar numa fazenda para tratar do gado.
Eram cem reses dentro de uma caatinga no meio da mata, duas léguas de onde habitava gente. Havia uma casinha para nosso abrigo e currais para prender o gado. O nosso trabalho era o seguinte: nos primeiros clarões da manhã íamos para o curral levantar as reses que amanheciam caídas devido a fraqueza, pois à noite deitavam-se e no outro dia não conseguiam mais levantar-se. Depois desse trabalho, pisando em estercos moles, sujando as mãos, tomávamos como primeiro alimento um cafezinho sem pão, em seguida cada um pegava um burro com cangalha, cambitos, cordas para amarrar as cargas e um facão. Metíamo-nos numa vereda, mata adentro, a cortar mandacaru e macambira para darmos de comer ao gado. Estávamos de volta pelas dez, com muita fome, arranhados das “malícias” e dos espinhos dos mandacarus. Para completar, nosso patrão era muito miserável, não dava a comida suficiente para fartar-nos. O almoço era um pirão de farinha com carne de carneiro e mais nada. Terminada a refeição tomávamos café e novamente íamos cortar a ração e distribuí-la com o gado, isto até duas da tarde quando, pela terceira vez, repetíamos a operação: voltando às cinco com os burros carregados, dessa vez, após descarregar o produto, íamos juntar o gado no curral. À noite, depois de uma ceia pobre e fraca, dormíamos, eu e meu companheiro, ao ar livre, ouvindo o canto da coruja e o chiado das cobras e o ranger dos paus quando o vento soprava. Assim todos os dias, do mesmo jeito. Todo o serviço era feito por nós e o ordenado vinte e cinco mil réis por mês, e pra piorar o patrão nos tratava muito mal.
Havia um mês que estávamos nessa luta. Um dia, quando saímos à tarde para procurar a bendita ração, demoramos muito e, por isto, chegamos à casa ao anoitecer. Encontramos o patrão zangado, disse que não voltamos cedo porque estávamos brincando... Iniciamos uma discussão e eu pedi que fizesse as minhas contas que ia embora naquela mesma noite. De começo não deu muita importância à minha saída, mas foi falar com o Chico Barros, que já tomara a mesma resolução, sozinho não ficava, eu saindo ele também saía. Quando o homem viu que ia fica só no meio da mata, com todo aquele gado para cuidar, pediu, rogou quase chorando para ficarmos, mas não havia pedido que desse jeito, viajamos na mesma noite. Fizemos aquela jornada de duas léguas a pé, numa estrada deserta e num areal que atolava até o tornozelo. Chegamos à casa de meu pai à meia-noite, muito cansados mas contentes, parecia que acabávamos de chegar no céu, livres, enfim, daquele suplício.

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