O “perigoso contraventor”
Desta vez foi o jogo do bicho. Era feito no balcão e me rendia alguns cruzeiros, que serviam para engrossar o meu lucro. Mas já nessa época era o jogo proibido por uma portaria da Secretaria de Polícia, e aquele que fosse flagrado vendendo seria preso e processado.
Vendia-o no balcão porque achava que não corria perigo, na confiança de que todos os fregueses eram conhecidos. Assim, sem nenhum temor de alguma coisa, fazia-o abertamente.
Aconteceu, porém, que um sargento da Polícia, de nome Oliveira, sujeito carrancudo e de bigodão, desses policiais mal encarados, me comprou Cr$ 40,00 fiado e não pagou. Morava com a mãe a meio quarteirão de nossa casa. Ficou zangado porque mandei cobrá-lo, e começou a perseguir-me por causa do jogo. Não querendo vir pessoalmente mandou um soldado à paisana. Era véspera da semana de Carnaval. O soldado veio dois dias fazer o jogo, mas nas duas vezes não me encontrou em casa, sendo atendido pelo meu filho, o Assis. No terceiro dia o sargento esperou que o "cambista" viesse encerrar, e, chegando na hora, lavrou um flagrante. Prendeu o "cambista" e me intimou a comparecer no Primeiro Distrito Policial às nove horas do dia seguinte, sábado de Carnaval.
Como não podia deixar de acontecer, fiquei um tanto preocupado e nervoso. E mais uma vez precisei de ajuda de minha Santa Protetora. E, na confiança de que Ela me ajudaria, comecei então a agir.
Nessa época era sócio do "Centro dos Retalhistas", tinha direito à assistência jurídica. Mas, como era sábado e não tinha expediente, tive que descobrir a residência do advogado. O doutor me aconselhou dizendo que fugisse de casa, pois se fosse preso só saía na quarta-feira de cinzas. Depois do Carnaval prometia cuidar do caso. Cheguei em casa triste. Avisei à Raimunda que tomasse conta da bodega, ia ficar em casa de um amigo até passar o Carnaval. Passei meio dia na casa de Pedro Pernambucano, mas não resisti e voltei para casa, tanto pela necessidade que sentia de trabalhar como pela confiança de que Deus estava comigo.
No dia seguinte ao da intimação o bigodudo veio falar comigo, disse-me: “O senhor não compareceu à Delegacia?” Tentei explicar-lhe que, conforme orientação do meu advogado, me apresentaria depois do Carnaval. O sargento me disse que já tinha entregue as pules do jogo ao Chefe de Polícia, e, caso não comparecesse segunda-feira, viria buscar-me preso. No mesmo dia procurei o Otávio Moura, meu colega de comércio, que levou-me à presença do Inspetor Simão, major da Guarda Civil. O major mostrou bastante interesse pelo caso, levando-o em seguida ao Primeiro Distrito Policial. Apresentou-me ao Dr. José Augusto – Chefe de Gabinete do Secretário de Polícia – a quem perguntou se havia alguma queixa contra mim. Este verificou nos arquivos e disse nada constar. Dessa forma, ficou acertado entre os dois, se chegasse algo a meu respeito o Dr. José Augusto já sabia do que se tratava e quebraria o galho. Por outro lado, se viessem a mexer comigo o major Simão responderia.
Porém, enquanto se desenrolava essa campanha de pacificação, o sargento Oliveira continuava no sério propósito de prender o “perigoso contraventor”.
O tal acerto deu-se numa segunda-feira de Carnaval. E permaneceu tudo calmo até o último dia.
Quarta-feira de cinzas amanheceu faltando muita coisa, pois vendera bastante durante o Carnaval. Bem cedo peguei o dinheiro do apurado e fui para o armazém fazer compras. Por sorte minha, ou por milagre, não sei, aconteceu que, se por desventura não tivesse saído, teria sido preso e recolhido ao xadrez. Pois, minutos após ter saído, chegou um carro patrulha com uma volante para prender-me. Desceram, mas encontraram a Raimunda sozinha no balcão. Eram ao todo um capitão, dois soldados e dois sargentos de polícia, todos bem armados. Foram se chegando e perguntando por mim. O capitão, diante da resposta de que tinha ido fazer compras, perguntou porque eu não tinha comparecido à intimação feita pela Polícia. A Raimunda explicou-lhe que eu falara com o major Simão, que se responsabilizara pelo caso. Furioso, respondeu: “Simão não tem nada que se meter nas minhas atribuições”. E ameaçou: “Se ele não comparecer dentro de vinte e quatro horas, venho buscá-lo para metê-lo no xadrez”.
Ao chegar à casa encontrei esta notícia. Fiquei triste. Deveria apresentar-me à Polícia no outro dia, de manhã. A noite, dormi mal. Levantei-me às cinco horas, preocupado, vesti-me e larguei-me para a casa do Inspetor. Por experiência pessoal, sabia que o major Simão era homem austero, e, para aproveitar-me desse pormenor, envenenei-o contra o capitão. Disse-lhe que o mesmo havia dito que não tinha nada que se meter na vida dele e que isto não era da sua conta.
Como que picado por uma cascavel, o major falou: “Menino, você não vai preso, porque quem não quer sou eu!”. E saiu comigo. Passamos no Quartel, do qual era comandante, deu as ordens de praxe, depois saímos a pé para a Polícia Central. Lá, como o Chefe não havia chegado, mandou que eu sentasse num banco e ficou passeando de um lado para outro. Enfim chegou o Coronel Murilo Borges – então Chefe de Polícia – que, antes mesmo de entrar em seu gabinete, foi abordado pelo Inspetor.
Deu-se um ligeiro diálogo. Em seguida o coronel bradou: “Ah Simão, esse camarada tá fazendo jogo mesmo, e tá querendo nos enganar!”. Nesse instante lembrei-me de uma conversa que tivera com o major durante a viagem de casa para a Polícia. Perguntara se tinha realmente feito o jogo, ao que afirmara que não, mas sim um garoto que sempre ficava no balcão. Recomendara-me, então, com as seguintes palavras: “De qualquer maneira você não fez jogo”. Daí porque foi ele pronto em afirmar para o coronel que eu não tinha feito jogo, que era um homem de responsabilidade, e por isto não ia mentir para ele.
Com esta defesa o coronel ficou furioso e puxou do bolso duas pules de jogo e entregou-as ao meu protetor, que chamou-me e interrogou-me apresentando as pules: “Menino, foi você quem fez estes jogos?” Respondi-lhe, consoante havíamos combinado, que não: “Não, senhor!”. Aí tornou a perguntar: “Esta letra não é sua?” Tornei a afirmar que não. Nesse momento, o coronel, um pouco aborrecido, perguntou-me: “Se esta letra não é sua, de quem é então?. Respondi-lhe calmamente: “Deve ser do meu filho que fez sem minha ordem”.
Após esse interrogatório os dois me abandonaram por uns instantes e ficaram conversando a alguns metros de distância. De repente, o major virou-se e falou para mim: “Menino, você pode ir”. Sabendo que estas palavras me anistiavam, livrando-me do grande castigo que decerto me seria imposto, respirei aliviado.
Passados uns três dias fiz um bilhete ao sargento que me denunciara, nos seguintes termos:
“Sargento Oliveira, espero que não me leve a mal, mas peço-lhe a gentileza de mandar pagar a pequena importância de seu débito, que é de Cr$ 40,00”.
Como era esperado, o milico não respondeu, tampouco mandou pagar. Mas, para seu castigo, o major, que durante os acontecimentos havia me perguntado o nome do sargento delator, passados alguns dias, mandou-o transferido para o interior.
Assim, com a firme confiança em Deus, vencia mais esta dificuldade.
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