sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Um comerciante amante da boa prosa e do chiste respeitoso

Eis um depoimento do Netinho sobre um fato pitoresco e engraçado da vida de comércio do Sr. Batista:

"Ele, seu Batista, tinha comércio. Comprava de sacaria. Tinha crédito na praça e clientela numerosa. Nem sempre selecionada. Muito conhecido e estimado, procurava atender sempre muito bem a todos. Era notório seu bom humor e sua saídas de situações embaraçosas ou delicadas. Tinha sempre pronta uma pilhéria, um chiste. Mas sempre dentro do respeito. Por isso, então, ainda mais apreciado.
Certa feita, lembro-me, no calor da tarde, bodega cheia de fregueses. Uma vizinha, boa freguesa, senhora simpática, já além dos trinta, entra.
- Boa tarde, seu Batista!
- Boa tarde, dona Maria!
Ela apoiou-se no balcão de madeira, ao lado da balança Filozola, ergueu-se um pouco nos calcanhares e vasculhou com os olhos os sacos de cereais abertos. Parecia não encontrar o que queria.
- Pois não, dona Maria. Vá dizendo de lá que de cá vou lhe vendendo.
E lá empunhava um pedaço de pirarucu.
- Deixe de brincadeira, seu Batista. O senhor sabe muito bem que tenho nojo desse bicho. Eu queria era feijão, mas o senhor não tem...
- Tenho.
E colocando ênfase no "tenho", com a mão trouxe de debaixo do balcão um punhado de feijão muito liso, reluzente. Ela recebeu o feijão, cheirou, mordeu um grão e fez com a cabeça que sim.
- Já procurei feijão mulatinho em todo lugar. Não tem um que preste.
Ainda mastigando o grão de feijão, indagou:
- É bom?
Incisivo, seu Batista respondeu:
- Cozinha. Cozinha que nem ovo.
Satisfeita, dona Maria pede um quilo. Paga, sorri, e se despede. Feliz.
O dia terminou e a noite também. Dia seguinte. O sol nascendo e seu Batista abrindo a bodega. E dona Maria entrando a esbravejar. Possessa, joga desaforadamente o saco de feijão, que, de papel, rompe-se. O feijão cobre o balcão e se espalha pelo chão.
- O senhor disse que cozinhava. O senhor disse que era bom.
Parou, respirou fundo e continuou.
- Botei pra cozinhar à noitinha. Fui dormir mais de meia noite e ele estava mais duro ainda. Fique com seu feijão e me dê meu dinheiro.
- Mas, dona Maria...
Seu Batista não ria. Certamente não queria aumentar a fúria da mulher.
- Mas, dona Maria - recitou pausadamente. Eu lhe disse, eu lhe avisei. Lembra o que lhe disse?
- O senhor falou que cozinhava.
- É. Cozinhava. Que mais?
E ela, mais calma, mas sem querer conversa:
- Não interessa. Não lembro. É. Falou que cozinhava que nem ovo.
Pausa. Suspense. Nem agora ela se apercebe do logro em que caíra.
- Dona Maria, eu lhe avisei. Cozinha que nem ovo. Quanto mais tempo no fogo, mais duro fica".

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