segunda-feira, 24 de março de 2008

Homenagem póstuma de um filho (II)

II – O Poetinha
Por: Jurandir Josino Cavalcante

"O papai nunca foi homem que gostasse da arte pela arte, pois, sendo simples e nascido no meio rude do campo, o seu único ofício se resumia em saber tratar a terra, cultivá-la, colher os seus frutos e vendê-los ou trocá-los na feira, que poderíamos acrescentar, com arte. Mas havia, sim, uma paixão por uma atividade artística muito popular em sua época de moço, pela literatura de cordel, dos cantadores de viola. Pois era dos poucos passatempos daqueles sertões brutos, onde a comunicação era escassa com o mundo civilizado. Leu muito, e tanto cantou, que fixou na memória centenas de poesias daqueles versejadores de antanho. No entanto não conheceu o teatro, tampouco o cinema, que só muitos anos depois vão povoar a sua mente.
Veio a seca, as dificuldades. Precisou de alargar o seu mundo, pois com a família ficando numerosa, o espaço não dava para abrigar os seus projetos, os seus sonhos. Não foi homem de pensar alto, como seus cunhados Assis e João, que foram bater pernas para as bandas do Sul. Pegou montaria e se retirou para Fortaleza, onde escreveu o mais longo capítulo de sua vida. Aqui os conhecimentos foram se alargando, mas aquela experiência haurida negociando nas feiras deram-lhe as ferramentas para a construção do novo mundo, onde, quando as forças já pareciam declinar, nasceu a fonte da inspiração e o desejo de fazer arte. Não sei bem se essa arte nasceu de uma necessidade, de um certo vazio que a velhice foi pondo no indivíduo, de uma solidão, de um buscar-se a si mesmo, no que passou, no que fez, e mesmo naquilo que gostaria de ter realizado. A necessidade – diz um escritor antigo – é a mãe das artes
[1]. Assim, parece que transformou a própria velhice participando ora de um pastoril, ora de um coral, coisas que nunca pensara fosse capaz de fazer.
Cantava, sim, mas a sua voz era muito desafinada (que me perdoe o meu bom pai lá do céu), e um dia, o novo maestro querendo melhorar a afinação do conjunto, eliminou-o do coral. Resultado: foram longos dias de depressão, queixando-se a um e outro filho e aos amigos. O maestro não se agradara de sua voz, não gostava dele, o maestro isso, o maestro aquilo. Um dos filhos, por fim, decidiu falar com o dirigente musical, que o acolheu novamente.
O teatro não passou de umas poucas participações suas num pastoril, no papel de Rei Mago. Mas encheu-o de alegria a filmagem que um filho fez de uma dessas apresentações.
O padre Antonio Vieira, num de seus famosos sermões, diz que o homem sendo formado de duas entidades, o corpo e a alma, tem necessidade de que uma delas comande todas as nossas atividades. E como fomos criados para dar glórias a Deus, isto só é possível se o comando estiver com a alma. Mas qual é a percentagem de domínio que esta tem que ter sobre o geral de nossas ações, para que a vontade divina seja atendida? É indagação bem difícil de responder, se levarmos em conta o homem comum, que vê na prática religiosa apenas um costume, um hábito de família. Não é o caso de papai, pois parece que convivia mais com o espiritual que com o material, fazendo dos preceitos religiosos a sua regra de vida.
Quando moço, soube conduzir a educação da família dentro do grêmio da Igreja, e, velho, colaborou, ele mesmo, com os trabalhos apostólicos.
Entrou para a confraria dos Vicentinos, onde não teve a mínima dificuldade de se adaptar. O seu espírito caritativo, a sua honestidade, o seu desprendimento, a sua lealdade, a sua vontade de servir ao próximo, sem interesses, sem vantagens pessoais, renunciando às comodidades de seu lar, fizeram-no um líder nato daquela pequena e humilde comunidade de religiosos.
O bairro todo o conhecia, principalmente os mais carentes. Todo mês distribuía alimentos e um pouco de dinheiro para os seus “assistidos”. Mas não ficava só nisto o seu sacerdócio. Era chamado quando um que estava doente piorava, ou quando morria. Diante do moribundo agia com tanta unção que mais semelhava o ministro da Igreja, confortando a viúva e órfãos naquele derradeiro instante. Fazia-o sozinho, porque a força que havia em sua alma o impulsionava à prática da verdadeira fraternidade cristã, sabendo que ali estava diante também da carência espiritual. Sabemos que, pela sua capacidade de se envolver com os problemas alheios, com as aflições e dores dos mais desvalidos, deve ter chorado ao pé de tantos leitos, fazendo coro às dores dos que ficavam, como um familiar a mais, ou como um amigo muito íntimo.
Na igreja de São Pio X era ministro eucarístico. Assíduo e sempre disposto a cumprir o seu ministério. Aqui distribuía o alimento espiritual, o corpo e o sangue do Salvador do Mundo, morto na cruz para redimir a humanidade, encarcerada que estava sob o poder do demônio. Lá a sua grei, assistida também com assiduidade com o alimento do corpo, com as migalhas que alcançava obter dos menos desvalidos, na esperança de tirá-los dos grilhões de uma miséria incurável. Muita vez eram os mesmos que comiam de um e outro alimento. Nessas horas, a sua satisfação era dobrada, pois sabia, pela própria experiência, que corpo e alma reclamavam ambos do sustento vivificante.
Não foi homem de fortuna, é sabido. Os parentes e amigos não o queriam pelo dinheiro, tampouco os desconhecidos. Era, sim, feliz. A felicidade tem esse ímã que atrai como a força de um milagre. Os parentes o amavam, os amigos o admiravam, os desconhecidos... aprendiam cedo também a amá-lo e admirá-lo. Não conheceu a prosperidade, mas cresceu tanto em bondade que ao chegar ao cume dos oitenta e três anos pode-se dizer que triunfou: deixou para trás “desmoronamentos”, desilusões, desenganos... e um barco que nunca deixara naufragar. Falto de instrução, simples e talhado desde o berço para as lides do campo, acumulou um saber natural, que a própria vida lhe foi dando, à medida que as cãs apareciam por entre a cabeleira. E todos bebiam dessa fonte e saíam revigorados.
Quinto filho de uma família de quatro homens e quatro mulheres, sobreviveu a todos eles, ficando como um líder para o quarteto sobrevivente. À mais próxima, Antonia, que conheceu a viuvez ainda nova, assistia-a como um pai, sendo mais novo do que ela. A sua casa era o centro para onde convergiam os que se retiravam – como ele mesmo o fizera – para a Capital, e nunca poupou esforços para bem atendê-los, abrigá-los, ampará-los. Dentre as que estavam distantes, Salomé merecia maiores cuidados pois atormentava-a uma dolorosa e fatal doença: um câncer que a consumia paulatinamente. Visitava-a, a fim de dar-lhe o conforto naquela fase já considerada terminal. Voltava ufano dessas viagens, parecia que regressava de uma missão de paz, sua interferência tinha sido fundamental para o apaziguamento dos ânimos. Acreditava poder voltar muitas vezes a revê-la e com ela rezar o “Pai Nosso”...
Sábado, 24 de setembro de 1994: o jornal O Povo, de Fortaleza, no seu caderno especial “Vida & Arte”, publicou uma matéria com o título “A idade da sabedoria”, assinada por Ana Cláudia Peres. Assim termina o primeiro parágrafo a jornalista: “Seu Batista, 83, o poetinha, entra em cena e a claque agradece...”
Era assim, papai volta e meia dava largas a sua veia poética, fazendo versos de circunstância. Surpresas, as pessoas achavam pitoresca aquela lucidez, e se sentiam confusas na hora de calcular-lhe a idade. Mas o que mais contagiava era a sua alegria; afinal, as pessoas acham que velho não combina com luz, lucidez, fogo. E seu semblante era sempre iluminado, os olhos vivos, a mente fortemente preparada para disparar a palavra exata, a frase lapidada, com um calor que poderia dizer-se juvenil".

[1] Orígenes.

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