sexta-feira, 11 de abril de 2008

Homenagem póstuma de um filho (IV)

Por: Jurandir Josino Cavalcante

Com a esposa

Como esposo, fazia parte do que chamamos casal perfeito. Mas, “casal perfeito”? parece-me casal imperfeito. Explico-me: “cheira” a binômio malformado. A razão é simples: não existe casal perfeito. Mas... pensando melhor, a perfeição do casal está justamente na sua imperfeição, quero dizer, na sua malformação. Ora, para não me tornar confuso, insisto: malformação deve ser entendida aqui como par constituído de pessoas de personalidades desiguais, que, por isso, pela desigualdade, se completam, produzem uma terceira entidade. Papai e mamãe sempre me pareceram esse tipo, esse conjunto, que, no desconjunto, se conjuntavam.

Vamos delinear os traços do casal, depois, verificar quais os estragos que a falta de um faz no sobrevivente.

Estamos no ano de 1937. Era presidente do Brasil Getúlio Vargas, que a 10 de novembro, cinco dias antes de papai completar os seus 26 anos, dá o golpe de estado, instituindo o Estado Novo. Lampião fazia as suas arruaças pelas cidades interioranas, sangrando sem dó a quem se opunha às suas façanhas. Governava o nosso Ceará Francisco de Menezes Pimentel e o Rio Grande do Norte Rafael Fernandes Gurjão. Nesse importante ano, Noel Rosa, autor de Pastorinhas, 1934, e Último Desejo, 1937, deixa para sempre este mundo velho. Na Espanha a guerra civil entrava no seu segundo ano, e, na Alemanha, o nazismo se preparava para dar o seu golpe, desencadeando, como o fez, a mais terrível de todas as guerras mundiais. Ainda nesse ano, no dia 17 de janeiro, domingo, na matriz de Nossa Senhora da Conceição, da freguesia de Portalegre, do Rio Grande do Norte, o padre Francisco Scholz, após a sua sesta costumeira, se preparava para oficiar um casamento. O sol parecia encoberto pelas nuvens, o vento bramia no interior da igreja, quebrando o silêncio daquele início de tarde, na rua não se via viv'alma. O vigário apressou-se a atravessar a praça, pois naquele instante chegava um magote de gente montada, e, pelo jeito, era para o casamento.

Papai ajudou a mamãe a descer do cavalo e conduziu-a até o altar. Na cerimônia, o padre, vermelhão e carrancudo, não estranhou que o noivo não tivesse a sua própria aliança, mas, saídos da igreja, os amigos não perdoaram.

“—Mas Batista, como é que tu casa só com uma aliança?”

Na verdade, isso não importava para ele. A noiva portava todo o ouro de que necessitavam para ser felizes. Como mais tarde ele vai versejar:

Depois veio o casamento,

Sem pompas nem mordomias.

Mas tudo aconteceu

Do jeito que a gente queria

E com as bênçãos de Deus

Tudo tornou-se alegria!

Portalegre parece que era o típico lugar feito para selar esse casamento, pois tinha sido fundada sob a invocação de São João Batista, o seu ínclito patrono, e de Nossa Senhora da Conceição, de quem ele se declararia, algum tempo depois, devotíssimo, principalmente depois da orfandade materna, em cuja devoção encontrara o consolo espiritual.

As flores do início eram as sempre-vivas: nunca murcharam nem perderam a cor. As cores dependiam das variações que a própria natureza lhes dava, por isso, enquanto um dia uma parecia vermelha, a outra apresentava cor mais suave... Ele chegava cansado, o cenho franzido, ela recebia-o com suavidade. Se ela estava triste, aborrecida, ele lhe dizia palavras que a faziam sorrir. Mas um dia as coisas não se deram rigorosamente assim. A cunhada Anália convidou-a para irem ao Olho D’Água. No caminho, perseguida por uma novilha, levou um susto enorme. De volta, grávida que estava há dois meses, pensava cair nos braços do “noivo”, em lágrimas, e ser acariciada e acalentada, entre o par de músculos do querido e bondoso marido. Teve surpresa! Ele reagiu: “Deixa de ser besta, mulher! Ter medo de uma novilhota!” E ralhou duramente com a frágil esposa. --Ah, que malvado! Diria quem ouvisse as suas queixas, entrecortadas pelo forte soluço, entranhando mais ainda o medo. O resultado veio num trote tão rápido que foi difícil não lembrar da novilha: com oito dias abortou aquela criança que seria o primeiro rebento daquele buquê de flores. Experiência amarga, cicatriz profunda no caule da planta viçosa e na sua melhor sazão.

Na sua dor, papai amargou uma ponta de arrependimento, não porque se sentisse culpado, que na verdade não o era. É que de alguma forma o seu agir, a sua reação, o modo como tratou aquele anjo que viera lhe pedir guarida, “Ah, que tristeza”, teria pensado, “Os meus desvelos... não teriam poupado essa criança?”, o seu arrebatamento não teria piorado o seu estado de tensão? Anos depois daria conselhos a um filho de como se deve tratar com uma esposa grávida, num palavreado carregado de reminiscências daquele fatídico acontecimento.

O tempo passou. Deus dera-lhes três varões famintos. A carga agora estava pesada, os grãos da lavoura mais raros e a lagarta mais voraz, carecia de novo lar para a sua princesa. Contra a vontade do sogro, decidiu-se: montaram nos animais e partiram para a cidade grande. Viagem dura, e, não obstante carregar o recém-nascido no colo, mamãe pouco sofreu, porque o diletíssimo esposo, homem forte, brigador com a própria natureza, velou sob o sol, ficou insone sob a lua. Queria admirá-la viçosa, bela, os olhos azuis, o sorriso nos lábios, queria-a feliz, para com ela construir a prole numerosa que sempre sonhou e, ao final, esperar pela realização daquela triste sentença dita pelo padre Francisco: “Até que a morte os separe”. Era agosto de 43. O primogênito, que também seguia junto, contava cinco anos de idade. Papai levava-o, muitas vezes chorando com sede, calor, noites maldormidas... e ainda tinha que cuidar do filho de um mês, da esposa e da equipagem. Pedro acompanhava. Era irmão mais velho, forte, sadio, ajudou no que pôde. Mas, diz o dito: Quem pariu Mateus, que o balance, e papai, muito consciente disto, como mais tarde escreveu se recordando, encarnou – sem olvidar as devidas proporções – o próprio pai de Jesus nos carinhos e dedicação com a família.

Enfim, a Canaã. Os olhos inundados daquele líquido tão ausente na terra que ficara para trás pressagiavam a felicidade que estava por vir, os dias de bonança, a alegria de ver a mesa rodeada dos filhos, bem alimentados e alegres. As dificuldades viriam; entanto, os dois, avezados à dura liça do campo, encararam a mudança como um prêmio do Céu. Meteram mãos à obra e construíram este mundo, rico legado que ao partirem deixarão para os descendentes. Não um mundo de bens materiais, de posses, de riquezas, mas um mundo moral, de realizações espirituais, de regras de bem viver, de amor ao próximo, e, assente sobre os demais, de profundo amor a Deus.

Ela está só, pois morreu sua sempre-viva. – Morreu? Pergunto-lhe. Ela me olha, com um olhar que não me vê, e busca no passado remoto reaver a figura da mulher mais feliz do mundo. E vê perpassarem todas as cenas felizes da sua vida, qual em êxtase, retratando nas mudanças fisionômicas os sentimentos atuais. Os olhos embebidos de lágrimas, por fim, ela responde: -- Não, a sempre-viva não morre.

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