sexta-feira, 16 de maio de 2008

Homenagem póstuma de um filho (VII)

VII – Instante em que caiu doente

Por: Jurandir Josino Cavalcante

Cícero, o famoso orador latino, conclui o seu livro Da velhice[1] com as seguintes palavras: “... a velhice é o complemento da vida e como derradeiro ato de uma peça; bom será ver o fim antes de sentir a fadiga...”. Quer dizer, a velhice tem quer ser vista, e mais ainda, ser sentida, como uma parcela ou divisão da vida, apenas no seu devido lugar extremo de uma grande representação teatral. A velhice é tão parte da vida quanto o é o nascimento e a juventude, a diferença nem um pouco sutil é de que os anos que o indivíduo acumula atracam nesse porto de destino com uma carga jamais experimentada. Para alguns é resistir ainda alguns anos, até que se apaguem todas as luzes, tão naturalmente como quando cai a noite sobre o mar; para outros, mesmo com o navio seguro por grossos cabos, as vagas vêm lançá-lo contra as paredes do cais, até consumir suas forças e arrebatá-lo para o fundo do oceano. Um termina – como deseja o sábio orador – antes de sentir a fadiga, ou as fadigas do fim da vida; o menos afortunado carregando o peso das fraquezas e mazelas que só uma longa viagem é capaz de produzir.
Bem, olhando o meu pai, o seu caminhar, o seu dinamismo, a sua alegria... olhando-o, não havia quem não se admirasse: ostentava muita saúde, muita disposição, voz forte e vibrante, olhar agudo, bom raciocínio, boa visão. Fotografado nesse período – setembro de 1994 – era fácil encaixá-lo no perfil do velho que não sentiu ainda a fadiga, portanto preparado para o golpe final da vida. Porém, não estava escrito, naquele grande livro da vida, que ele conservaria esse status quo até o instante de expirar, ou seja, fazendo pilhéria até com a indesejada das gentes. Bem pelo contrário, uma nova etapa estava para começar, logo depois de ter feito o epílogo daquela outra, quando interrogado pela repórter:
Véspera de completar oitenta e três anos, faltando menos de dois meses, era assim mesmo que ele se definia: “Não me sinto velho”, e com uma deslavada pretensão completava: “Sou muito jovem”, se jactando de ser o que na verdade não era. Poderia dizer-se discípulo de Cícero, quando noutra passagem daquele livro diz: “Assim como estimo um adolescente no qual se encontra algo de um velho, assim aprecio um ancião no qual se encontra alguma coisa de um adolescente”. Só que não se referia aos excessos praticados por essa classe de gente teimosa. Um velho nunca terá a mesma força muscular, sua coluna vertebral já não dispõe mais daquela flexibilidade de outros tempos. Falta-lhe agilidade nos movimentos e equilíbrio, a visão não é a mesma, o tato, o raciocínio. É Cícero ainda quem conclui: “E agora, certamente, não desejo as forças do adolescente (pois este é o segundo ponto a respeito dos defeitos da velhice), assim como, quando jovem, não desejava as do touro ou do elefante. Convém usar o que se tem, e em tudo aquilo que fizeres, age segundo tuas forças”.
Conclusão: não conhecendo Cícero, papai não teve como evitar a “tragédia do cajueiro”. Parece simplório, mas teria ao menos a autoridade de um homem famoso a freá-lo em suas malinações.
“...brada o Francisco Batista, enumerando suas travessuras como subir nas fruteiras enquanto a garotada joga videogame”, era esse o seu exercício quotidiano: no alto da goiabeira, às vezes era até confundido como um galho a mais. Mas não foi esta fruteira de pequeno porte a responsável pelo seu infortúnio.
Havia no fundo do quintal um enorme cajueiro, que ele mesmo plantara, regara, vira crescer e, do chão mesmo, saboreara muitos frutos. Estava então robusto, os braços fortes, frondoso, mais alto do que todas as outras árvores. Os primeiros lanços do grosso caule ele vencia com ajuda de uma escada, depois se sentia em casa: era capaz de identificar todos os novos brotos, os galhos que mais floriam, os melhores acessos... lá em cima meditava na vida, nos longos dias já vividos, na velhice, na morte. Nessas alturas deixava-se ficar, afastado de todos e de tudo, esquecia os problemas, os afazeres, refazia o passado, imaginava o futuro, rezava, cantava... mais do que no alto de uma árvore, se sentia num eremitério, ouvindo o chilrear da passarada.
Um dia, numa manhã como as outras, nem mais bela nem menos, os frutos de seu nodoso vegetal brilharam ao sol como pequenas luzes numa gigantesca árvore natalina. Depressa alcançou o alto, de olho nos suculentos cajus. Porém, já se preparando para colher o primeiro caju, percebeu que esquecera a sacola de que sempre se fazia acompanhar para conduzir o produto da colheita. Desceu, subiu. Queria agora uma vara para alcançar as pontas dos galhos. Desceu novamente, subiu. Sentiu fisgada na coluna, seguida de dor insuportável. Desceu cuidadosamente para nunca mais cometer o desatino de subir nas suas queridas árvores. Subiria, sim, quase quatro meses depois, mas ao Céu, lugar em que lhe seriam dados os frutos celestes como alimento espiritual, sem que fosse preciso esforço algum, além do simples desejo de com eles se alimentar.
Difícil, para os que o acompanhavam de perto, acreditar na queda de um homem de sua têmpera. Era necessário atestado. Mais do que o simples dizer: “Eu estou doente!” ou “Sinto uma dor insuportável!”. Foi mesmo custoso para os seus filhos aceitar que podiam estar diante do começo do fim. Os olhos do coração, somente eles, que são tão miúdos, tão recônditos, mas, no mesmo instante, tão perscrutadores... foram eles, enfim, que nos colocaram diante de um velho pai, alquebrado, no leito de dor, a pedir por socorro.

[1] Editora Cultrix Ltda, tradução de Tassilo Orpheu Spalding.

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