terça-feira, 5 de agosto de 2008
Homenagem póstuma de um filho (X)
X – Agravamento da doença
Por: Jurandir Josino Cavalcante
Pudéssemos avaliar o dia a dia do papai, como quem olha a um fósforo queimando, poderíamos dizer: era um lento caminhar para a morte. E víamos o presente e o futuro, sem poder mais que sofrer juntos. A espera seria talvez longa, mas, no ar, o prognóstico fatal estava muito vivo. Assim, o amor filial crescia. A expectativa da perda faz dessas com o homem, sustenta e fortalece o apego e o medo da separação. Neste caso, tratava-se de zelar pela permanência entre nós desse santo que tantos milagres fizera para dar o nosso sustento, nossa educação, nossa formação cristã, nosso conhecimento das mazelas do mundo. Partíamos para a luta, contra a opinião dos que prognosticavam, para a idade provecta, a ação demolidora das parcas, que, consoante nossos antepassados latinos, cortavam o fio da vida. Se necessário, lutar, esgrimir, corpo-a-corpo, mas não perder, não deixar esvair aquele amor, fonte e sustento de nossas vidas.
Em 1977, quando contava sessenta e seis anos, submetera-se à cirurgia da próstata. Os filhos revezaram-se ao pé de seu leito, na Policlínica. A filha, personalidade forte como a do avô materno, brigara pelo direito de estar ao seu lado na vigília noturna, e saíra vencedora. Papai teve recuperação rápida. Voltou forte, pronto para reiniciar a batalha que duraria mais dezoito anos. Portava malignidade que teve de tratar. Porém, desse dia até expirar, nunca foi homem de se queixar de qualquer incômodo. Pelo contrário, como disse à jornalista: “... não me sinto velho. Sou muito jovem”. O seu jeito de ser, o seu estilo, era antes de tudo um estado de espírito, que sabia esconder surpreendentemente a carga pesada dos oitenta e três anos de vida.
Dezoito anos portanto se passaram, e estava ali, acamado, a solicitar pela ajuda dos jovens filhos, agora em número de seis, sobreviventes dessa longa e penosa caminhada.
Disse, no começo ninguém deu crédito aos seus reclamos: era forte e com saúde para dar e vender, além de representar para todos nós quase um mito, algo como esses heróis lendários, que atravessam as idades sem nunca morrerem. Essa crença só lhe trouxe prejuízos, pensando os que o rodeavam que era mais uma de suas famosas brincadeiras. Entretanto, certo dia em que as dores cutucavam com insistência, tomou do telefone, ligou para um filho. E entre lamentos e pedidos de atenção, concluiu chorando: “Logo você, meu filho, me falta nesta hora?”. Nesse momento o coração do filho bateu mais forte, sentiu estar à frente de um drama, drama paterno, trágico drama paterno. Umedeceu também os olhos e sentiu uma grande inquietação interior. Correu ao encontro do pai, para abraçá-lo, para beijá-lo, para socorrê-lo.
A idade agora subia a mais de oito décadas, cume no qual o homem não possui mais aquele brilho e aquele equilíbrio de outrora. Aos filhos exigia-se que formassem no conjunto, ou na individualidade, o seu cajado, rijo e de boa cepa, para a firmeza da caminhada e para o bom trilhar dos caminhos e descaminhos. Era verdade, o filho percebeu, ao vê-lo, a doença já o fizera sério, não havia mais aquele pai alegre, capaz de transformar tristezas em alegrias, sisudez em risadagem. Desse dia, começaram as idas e vindas aos doutores; mudanças da cama para a rede; os incômodos de não estar bem em qualquer posição; os medicamentos fortes, contra as dores insuportáveis. Os outros, todos os filhos, procuraram dar de si o que nem para si davam. Os que viviam perto, mais perto ficaram; os de longe, correram para junto.
Passou o seu aniversário; chegou o Natal, entrou o novo ano: nos semblantes lia-se tristeza, lia-se silêncio, lia-se incapacidade de dar as respostas que a ciência não soubera dar. Tudo fez-se para pacificá-lo, aquietá-lo, devolver-lhe a tranqüilidade da alma. Deitamo-lo num colchão d’água. Assistimo-lo noite e dia. Não melhorava. As mentes, os olhos, os corações, as mãos elevaram preces para o alto, unissonantes, crédulas, filiais, a pedir ao Pai pelo pai.
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