Homenagem póstuma a um varão católico
Por: Juraci Josino Cavalcante
“Pretiosa in conspectu Domini mors sanctorum eius” – Quão preciosa no conspecto do Senhor é a morte dos justos (Sl 115, 5).
21 de janeiro de 1995, num sábado, dia de Santa Inês, o Sr. Batista havia falecido numa UTI de hospital. Toda a família, triste e pesarosa, foi avisada do falecimento. No dia seguinte seria o enterro. Da Bahia, veio Jurací e sua família; de Olinda, o Netinho e sua esposa já estavam presentes. Lá estavam a esposa, os filhos, os netos, os bisnetos, sobrinhos, etc. Faltava um, o “Toinho”, que morava também na Bahia, mas por causa da grande distância estava demorando a chegar. Era necessário retardar um pouco a saída do féretro, com o que todos concordaram.
Cada família mandou fazer sua coroa de flores, onde constava a homenagem póstuma ao humilde patriarca falecido. Não faltaram os seus confrades vicentinos, nem tampouco os católicos com quem convivia em sua paróquia, inclusive muitos daqueles que ele assistira caridosamente ora levando o conforto material ora o espiritual (era ministro da Eucaristia). Seus filhos e parentes estavam cheios de azáfamas: alguns se encontravam envolvidos nos preparativos para o enterro, providências daqui e dali, telefonemas, etc. Outros, voltados mais para as coisas do espírito, procuravam rezar com os visitantes. Ora um vizinho puxava um mistério do terço, ora um filho da casa, ora uma outra pessoa que se oferecia na hora.
É de se notar que poucos choravam e não havia gente com comportamento de carpideiras. Quando surgia um parente ou amigo que chegava de longe, aproximava-se de D. Raimunda e esta logo se desfazia em lágrimas, mas um pouco influenciada pela emoção da visita. Em poucos instantes, porém, ela já se consolava, até chegar mais alguém... Chegava a Tia Telina, a Tia Antonia (ou Tia Toinha), tios e tias, sobrinhos, netos, bisnetos... E a casa se enchia de gente, parentes, amigos, vizinhos. Uma parente fazia chá constantemente para dar aos mais tristes e assim acalmá-los. Mas não se via ninguém com óculos escuros, como soe acontecer em enterros ditos "sociais", onde as pessoas procuram esconder suas lágrimas, os olhos avermelhados, ou então para que ninguém veja a secura dos mesmos e não se saiba que não chorou.
Não, nada disto se notava naquela modesta família. Chorava-se, sim. Era um soluço ou alguns soluços, espaçados por alguns choros mais copiosos, mas logo uma alma generosa, uma pessoa dotada de piedade católica, convidava todos para a oração, puxava-se de um terço, e em breve os soluços eram abafados pelo som da oração contrita e piedosa. Era mais necessário rezar do que chorar. O esquife aberto, mostrava o corpo do Sr. Batista estendido, olhos fitos no alto, nariz adunco, com as mãos postas. Vendo-o assim, motivo para meditações sobre os Novíssimos do homem, a tônica que imperava naquelas pessoas era o espírito de oração, pela alma dele, e por nós também.
As mãos dele tiveram de ser amarradas para que ficassem postas na posição de oração. Explicaram o porquê. O Sr. Batista sofreu muito em sua agonia e morte. Provavelmente foi martirizado, holocausto hoje muito comum nos doentes idosos. Teria sido vítima de infecção hospitalar? De imperícia médica? Ou do descaso com que hoje tratam os idosos? Não se sabe, mas o certo é que, internado na UTI, num ambiente inteiramente pagão e materialista, tiveram que prender suas mãos à cama para evitar que tentasse tirar as agulhas dos soros e dos aparelhos ligados. Provavelmente, na agonia, lutou para desvencilhar-se das cordinhas que amarravam seus pulsos. Por isto suas mãos estavam inchadas, roxas, e impedindo que ficassem naturalmente “de postas” como costumava rezar quando era vivo. Corpo empertigado, nervos hirtos e sem mais ter como flexioná-los, só houve um meio de por suas mãos postas, em posição de oração: amarrando-as.
Ao meio de uma das orações, chega finalmente o Toinho. Abraça a mãe, os irmãos, o filho, recebe as condolências dos parentes e amigos e se posta perante o caixão mortuário contemplando o seu bondoso pai, ali jazente, estático, frio, roxo, de olhar embaçado e perdido no infinito: já não mais vê, não mais ouve, não mais sente, não mais vive, sua alma foi encontrar-se com Deus para o primeiro julgamento, o juízo particular. Só restava àquele filho, como aos demais, pedir a Deus por sua alma, a fim de que tivesse alívio no Purgatório e gozasse logo da glória eterna no Céu.
Chegou o horário da saída. Não há convulsão, não há gritos nem histerismos. Os homens pegam o caixão pelas mãos, devidamente fechado, e começam a levá-lo para o veículo que o conduzirá até o cemitério. Quando tudo está pronto, D. Raimunda já tendo rezado e dado uma espécie de adeus a seu esposo, alguém diz a ela que fique em casa e não vá ao cemitério: é melhor, para não sofrer mais. A reação dela foi imediata: “nada disto! Eu vou também; e quero ir no carro da frente!”. Foram os vizinhos que se preocuparam em cuidar da casa, que ficaria sem ninguém. E realmente ela foi no carro que seguia logo após ao da funerária, no banco dianteiro, rezando silenciosa. Sua alma era a de uma sertaneja, “antes de tudo forte” como diria Euclides da Cunha, mas sua fortaleza estava mais em sua Fé, em sua Religião, em sua piedade e sua catolicidade. D. Raimunda mostrou-se forte porque sempre foi católica e conformada com a vontade de Deus. Esta sua fortaleza ela já o demonstrara na morte de sua mãe, de seu pai, e de três de seus filhos, um com apenas 2 anos e dois já adultos, com 25 e 33 anos. Agora chegara a vez de seu esposo, e ela estava ali altaneira, fitando-o, sem descabelamentos, sem histerismos, sem choros convulsos e insensatos, contrita, conformada e rezando por ele.
Chegamos à capela do cemitério, onde se faria a encomendação do corpo e se rezariam as últimas orações enquanto se preparava a cova. Tudo em ordem, em meio silêncio, com respeito e piedade sinceros. Terminadas as orações, marcha-se com o caixão por entre as ruelas cheias de túmulos, um féretro a pé por entre os arvoredos, algumas pessoas rezando ainda, até o local. A cova estava aberta e os coveiros, com suas pás, aguardando o momento para cumprir seus deveres. O caixão desce, há muito respeito e silêncio pelo momento. D. Raimunda pede uma das pás de um coveiro e, com calma e serenidade, joga a primeira pá cheia de areia sobre o caixão depositado no fundo da cova. Os outros a seguem, tanto os filhos quanto os parentes, cada um calmamente, como se aquilo fosse uma solenidade de adeus, um ritual, lançando a sua pá de areia em cima daquele que fora esposo, pai, avô, bisavô, tio e sobretudo, irmão, Irmão com "I“ maiúsculo, pois faleceu irmanado na mesma Fé: a crença e vivência na Santa Igreja Católica, Apostólica e Romana.
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