sábado, 27 de março de 2010

O sertanejo, antes de tudo um forte

Bate a enxada no chão
limpa o pé de algodão
Pois pra vencer a batalha

precisa ser forte, robusto, valente e nascer no sertão;
Tem que suar muito pra ganhar o pão,
Que a coisa lá não é brinquedo não.

Mas quando chega o tempo rico da colheita,
trabalhador vendo a fortuna se deleita:
Chama a família e sai
Pelo roçado vai
Cantando alegre, ai, ai, ai, ai, ai.
(música de Zé Dantas e Luiz Gonzaga)

A frase que Euclides da Cunha tornou famosa em seu livro “Os Sertões” (O sertanejo é antes de tudo um forte) é o resultado de uma profunda análise psicológica do nordestino, principalmente do nordestino sertanejo, quer dizer, daquele que arriscou tudo se embrenhando pelas caatingas, em ermos longínquos e inóspitos, para lá construir o seu mundo, sua vida, sua família e fazer de si mesmo este modelo vivo de fortaleza e austeridade. Formado assim na luta, nas dificuldades ingentes das intempéries e do sofrimento humano, o sertanejo nordestino tem uma têmpera forte, um caráter firme e decidido, mas ao tempo com uma alma dócil, cheia de bondade, amorosa, cálida para com os amigos e aguerrida para com os adversários de si e dos seus. Um exemplo bem marcante disto foi tudo o que o Sr. Batista teve que sofrer em seu sertão, como ele mesmo conta em suas reminiscências aqui transcritas, alimentado, sustentado, por sua religiosidade franca, sincera e ainda que pouco instruída.
Sua primeira viagem em busca de melhorar de vida foi feita em 1927, conforme relata, tendo intenção de viajar 22 léguas (l32 km!) a pé, de Portalegre a Mossoró, levando consigo apenas uma rede de dormir, um lençol e uma muda de roupa. Contava cerca de 16 anos de idade e nunca havia saído de casa, não sabia nem pra que lado ficava Mossoró. Após percorrer os primeiros três quilômetros para a estrada principal encontra-se com uns desconhecidos, comboieiros que se dirigiam para seu mesmo destino. Pediu para acompanhá-los. Dormiu no meio do caminho, talvez ao relento, e no dia seguinte amanheceu com febre. Ele mesmo relata: “...mas assim mesmo saí acompanhando aqueles estranhos companheiros com os seus burros de cargas, numa estrada poeirenta e sob um sol escaldante. Às doze horas, quando paramos para o almoço, a febre tinha aumentado, sentia muito frio e não podia mais caminhar. Então, dentre aqueles desconhecidos, surgiu uma alma generosa que, compadecendo-se de mim, cedeu-me a sua montaria e seguiu o resto da viagem a pé. Lá chegando à casa do meu tio Vicente, notamos que a minha doença era catapora e em pouco tempo estava bom”.
Outra viagem longa foi feita em 1930, três anos depois, ele e mais três irmãos, esta em direção ao Ceará, à cidade de Jaguaribe. Novos problemas na viagem, pois como seguiam à pé e ele estava com um pé doente não conseguia andar. Viram alguns animais bebendo água, amarraram um deles e puseram o Sr. Batista em cima do animal. À noite encontraram uma casa para pousada e soltaram o animal, pois o seu pé já estava melhor para continuar sua jornada.
Detiveram-se numa cidade chamada Flores, onde encontraram trabalho na construção de uma rodovia. Os homens que em tempos de seca faziam tais trabalhos eram chamados no sertão de “cassacos”, termo que Aurélio Buarque de Holanda captou e inseriu em seu dicionário. Novos problemas. Surgiu uma epidemia de paratifo, e, segundo ele, morria gente diariamente vitimada pela doença. Calor escaldante, poeira, trabalho estafante e duro, junto a uma alimentação precária (comiam quase só um tipo de farinha de péssima qualidade), enfraqueciam os cassacos e os faziam vulneráveis às bactérias e vírus. Seus três irmãos foram acometidos da moléstia e logo voltaram para casa. Ele, teimoso, ficou. Mas logo adoeceu também e teve que voltar para casa. A febre, porém, não o deixou chegar à sua casa. Teve que se demorar na casa de um seu tio que morava a meio do caminho, até que seu pai o viesse buscar a cavalo.
A tônica dos relatos do Sr. Batista era a seca que rondava constantemente as vidas rurais dele e dos seus familiares. No ano de 31 nova estiagem, novas dificuldades. Foi aí que juntou-se com um amigo ou parente, Chico Barros (há Barros na família de sua mãe) e foram tratar do gado de um fazendeiro. Estava próximo dos 20 anos de idade e já levara uma vida duríssima pelos sertões. Tinham que se meter nos matos para cortar mandacaru e macambira para dar aos animais. Quando voltavam, cansados, famintos e cheios de espinhos na carne, tinham como comida apenas um pirão de farinha com carne de carneiro. Terminado o almoço, tomava-se um cafezinho e voltava-se ao trabalho, sem direito a uma sesta sequer. E a operação se repetia: embrenhar-se nos matos, cortar mandacaru e macambira, colocar em cima dos burros e trazer até os currais para dar ao gado. Antes de tudo, teriam que reunir os animais, soltos pela caatinga. À noite, após uma ceia também fraca, dormiam ao relento. E assim era todos os dias naqueles ermos.
Durou pouco mais de um mês a sua empreitada com o fazendeiro, pois se desentenderam com ele e foram embora, deixando-o só. Numa certa noite que o dono da fazenda os tratou mal, naquele mesmo momento resolveram pegar seus pertences e largar o “emprego”, fazendo aquela jornada de duas léguas a pé, numa estrada poeirenta e num areal que ia até o tornozelo.
Quando não fazia estas viagens e tais aventuras o Sr. Batista levava a sua vida com seu pai, ajudando-o no roçado, com a enxada, capinando, cavando, plantando, colhendo, etc. Debaixo de sol escaldante. Foi assim que lhe foi insculpida em seu espírito aquela paciência, que era paradigma de seu avô e de seu pai, capaz de “cozinhar pedra”, como diria o próprio sertanejo.
Após o casamento, a vida dura continua a ser a constante. Teve que trabalhar alhures para manter a família, mas seu sogro o chamou para morar com ele no ano seguinte, quando já tinha nascido o primeiro filho. Trabalhava na agricultura, talvez em terras da família do sogro, e nas horas de folga vendia legumes e carnes de porcos e carneiros na feira livre do lugarejo. No final da década de 30, em torno do ano de 39, até que a vida lhe corria sem maiores contratempos. Iniciada, porém, a década de 40, começa novo período de secas. De 41 até 43 as safras se perdiam sem remédio. Não havia o que fazer.
Foi exatamente em 43, quando já tinham 4 filhos, que ele e sua esposa amadureceram a idéia de ir embora dali e se mudar para Fortaleza. Mas antes de partir Deus lhes reservava um duro revés. Após nascer o quarto filho, no mês de agosto, morre o terceiro, de desidratação, com apenas 2 anos de idade. Isto não foi motivo para desânimo nem desesperos ou revoltas contra Deus: o casal havia decidido e assim, mesmo tendo morrido um filho, fazem a viagem com o mais velho e o mais novo (com 2 meses de nascido), deixando o segundo (Francisco Assis), que tinha 4 anos de idade, com os avós maternos.
Seu sogro era contra a viagem, pois não lhe parecia sensato partir daquela forma para tão longe e nas condições em que eles iam viajar. O primeiro trecho da viagem fizeram a lombo de animais, auxiliados pelo seu irmão mais velho, Pedro Batista, até à cidade de Quixadá, no Ceará. Lá se hospedaram em casa de um primo da família, por nome José Pinto, enquanto mandavam avisar aos cunhados que já moravam em Fortaleza (Francisco e Luz, irmãos de D. Raimunda). De Quixadá até Fortaleza a viagem foi feita de trem, mas mesmo assim como deve ter sido enfadonha e cansativa! Em Fortaleza tiveram mais um contratempo, mais uma dificuldade: os familiares não os estavam esperando na estação, pois o trem atrasara, só chegando a altas horas da noite.
Assim chega a Fortaleza um espírito denodado, uma alma fortalecida pelas tribulações, pelos sofrimentos, pelas contrariedades, mas ao mesmo tempo, possuída por uma tal doçura e bondade que encantava a todos, principalmente seus filhos.
Dona Raimunda conta que nos primeiros dias sofreram muito para se acomodar à vida dura da capital cearense. Diz ela que viajava constantemente de ônibus (imaginem como seriam eles naqueles tempos!), fazendo um primeiro percurso à pé de sua casa até o “asilo” (uns 4 ou 5 quarteirões), e do centro da cidade até à Aldeota novamente à pé a fim de costurar as roupas da família na casa de seu irmão Luís. Levava consigo as crianças (o Neto e o Franciné, este ainda menino de colo).
O Sr. Batista teve compaixão de sua esposa e providenciou logo a compra de uma máquina de costura, dando por ela “quinhentos mil réis”, segundo relata mais adiante em suas reminiscências. Todos os seus filhos viram a mãe costurar com esta antiga máquina alemã, marca Uskivarna, durante anos a fio.
Ocorre que aquele dinheiro ele poderia ter utilizado todo na compra de seu comércio, prometendo que depois compraria a sonhada máquina de sua esposa. Mas não era este seu pensamento, sabendo muito bem o quanto era útil para sua esposa e família a compra daquela máquina.
Era assim o Sr. Batista. Era este o seu espírito. Logo angariou muitas amizades e se fez notabilizar como um homem bondoso e amigo. Todos

Nenhum comentário:

Postar um comentário