Maria Quitéria, heroína da guerra de nossa Independência na
Bahia, é apresentada por certa corrente feminista como detentora de
masculinidade, haja vista que se vestiu de homem para ingressar nas tropas que
lutavam no Recôncavo baiano contra os portugueses. Não é bem assim que a viu Maria Graham quando
esteve no Brasil e recebeu a visita da famosa baiana, no Rio de Janeiro. O fato
foi registrado pela inglesa em seu famoso diário e ocorreu no dia 29 de agosto
de 1823, poucos dias após o fim da guerra de independência na Bahia, ou “Guerra
do Recôncavo” como ficou conhecida na época:
Os portugueses, comandados pelo general
Madeira, resolveram não reconhecer a independência do Brasil: houve reação
local e logo travou-se uma guerra entre as forças portuguesas e os patriotas locais,
somente terminada no dia 02 de julho de 1823, quase um ano após o brado de
independência dado por Dom Pedro I. Por puro amor à Pátria, Maria Quitéria
resolveu ingressar nas nossas tropas fazendo-se passar por homem.
Segue abaixo o relato do encontro entre Maria
Quitéria e Maria Graham:
“Recebi
hoje a visita de D. Maria de Jesus, jovem que se distinguiu ultimamente na
guerra do Recôncavo[1].
Sua vestimenta é a de um soldado de um dos batalhões do Imperador, com a adição
de um saiote escocês, que ela me disse ter adotado da pintura de um escocês,
como um uniforme militar mais feminino. Que diriam a respeito os Gordons e os
Mac Donalds? O traje dos velhos celtas, considerado um atrativo feminino?! –
Seu pai é um português, chamado Gonçalves de Almeida[2],
e possui uma fazenda no rio do Pex [peixe], na paróquia de S. José, no Sertão,
cerca de 40 léguas para o interior de Cachoeira. Sua mãe era também portuguesa;
contudo, as feições da jovem, especialmente os olhos e a testa, apresentam os
mais acentuados traços dos índios. Seu pai tem outra filha da mesma mulher,
depois de cuja morte ele se casou de novo; a nova mulher e as crianças faziam
com que a casa não fosse muito confortável para D. Maria de Jesus. A fazenda do
Rio do Peixe é principalmente de criação, mas o proprietário raramente sabe ou
conta as suas cabeças. O Senhor Gonçalves, além do gado, planta algum algodão,
mas como no sertão passa às vezes um ano sem chover, a produção é incerta. Nos
anos de chuva ele pode vender quatrocentas arrobas, por 4 a 5 mil réis; nas
estações secas dificilmente pode colher acima de sessenta ou setenta arrobas,
que podem alcançar de seis a sete mil réis. Sua fazenda emprega vinte e seis
escravos.
As
mulheres do interior fiam e tecem para sua casa, como também bordam lindamente.
As moças aprendem o uso de armas de fogo, tal como seus irmãos, seja para caçar
seja para defenderem-se de índios brabos.
D.
Maria contou-me diversas particularidades relativas a suas próprias aventuras.
Parece que, logo no começo da guerra do Recôncavo, percorreram o país em todas
as direções emissários do governo para inscrever voluntários; que um desses
chegou um dia à casa de seu pai, na hora do jantar; que seu pai o havia
convidado a entrar e que depois da refeição ele começou a falar sobre o
objetivo de sua visita. Começou ele a descrever a grandeza e riqueza do Brasil
e a felicidade que poderia alcançar com a Independência. Atacou a longa e
opressiva tirania de Portugal e a humilhação em submeter-se a ser governado por
um país tão pobre e degradado. Ele falou longa e eloqüentemente dos serviços
que Dom Pedro prestara ao Brasil, de suas virtudes e nas da Imperatriz, de modo
que, afinal, disse a moça: “Senti o coração ardendo em meu peito”. Seu pai,
contudo, não partilhava em nada seu entusiasmo. Era velho, e disse que nem
poderia juntar-se ao exército, nem tinha um filho para ali enviar; e quanto a
dar um escravo para as tropas, que interesse tinha um escravo em bater-se pela
independência do Brasil? Ele esperaria com paciência o resultado da guerra e
seria um pacífico súdito do vencedor. Dona Maria escapuliu então de casa para a
casa de sua irmã, que era casada e morava a pequena distância. Recapitulou o
grosso do discurso do visitante e disse que desejaria ser homem para poder
juntar-se aos patriotas. “Pelo contrário”, disse a irmã, “se não tivesse marido
e filhos, por metade do que você diz, eu me juntaria às tropas do Imperador”. Isto
foi bastante. Maria obteve algumas roupas pertencentes ao marido da irmã, e
como seu pai estava para ir a Cachoeira a fim de negociar algum algodão,
resolveu aproveitar a ocasião e partir atrás dele, bastante perto para ter
proteção em caso de acidente na estrada, bastante longe para escapar de ser
presa. Afinal, à vista de Cachoeira, parou; e saindo da estrada, vestiu-se à
moda masculina e entrou na cidade. Isto foi sexta-feira. No domingo ela
arranjou as coisas tão bem que já havia entrado no Regimento de Artilharia e
montado guarda. Ela era muito fraca, porém, para esse serviço e transferiu-se
para a infantaria, onde está agora. Foi enviada para aqui, creio eu, com
despachos, e para ser apresentada ao Imperador que lhe deu o posto de alferes e
a ordem do Cruzeiro, cuja condecoração ele próprio impôs em sua túnica.
Ela é
iletrada, mas inteligente. Sua compreensão é rápida e sua percepção aguda. Penso
que, com educação, ela poderia ser uma pessoa notável. Penso que, com educação,
ela poderia ser uma pessoa notável. Não é particularmente masculina na
aparência; seus modos são delicados e alegres. Não contraiu nada de rude ou
vulgar na vida do campo e creio que nenhuma imputação se consubstanciou contra
sua modéstia. Uma coisa é certa: seu
sexo nunca foi sabido até que seu pai requereu a seu oficial comandante que a
procurasse.
Não há
nada de muito peculiar em suas maneiras á mesa, exceto que ela come farinha com
ovos ao almoço e peixe ao jantar, em vez de pão, e fuma charuto após cada
refeição, mas é muito sóbria”.
(“Diário
de Uma Viagem ao Brasil” – Maria Graham – Cia. Editora Nacional – SP – págs.
329/331)
Segue abaixo,
uma de suas biografias:
Maria Quitéria (1792-1853) foi militar brasileira.
Pioneira na luta de reconhecimento da independência. Baiana de nascimento e com
grande habilidade no uso da arma de fogo, inscreveu-se como voluntária para
lutar contra as províncias que não reconheciam D.Pedro como imperador. A Bahia
tinha grande contingente militar português e apresentou resistência às forças
do imperador. Para comandar as tropas brasileiras D.Pedro enviou à Bahia o
general Pierre Labatut, que organizou as tropas e que obtiveram as primeiras
vitórias contra os portugueses. Maria Quitéria teve atuação destacada em lutas
importantes. Foi condecorada com a Ordem Imperial do Cruzeiro do Sul.
Maria Quitéria de Jesus (1791-1853) nasceu no dia 27
de julho, no sítio do Licorizeiro, no arraial de São José de Itapororocas, hoje
Feira de Santana na Bahia. Filha do fazendeiro Gonçalo Alves de Almeida e
Quitéria Maria de Jesus, que morreu quando a filha tinha dez anos. Quitéria
assumiu a casa e cuidou dos dois irmãos. Seu pai casou pela segunda vez, mas
logo ficou viúvo. Casou novamente e teve mais três filhos. Sua nova esposa não
apoiava o comportamento independente de Maria Quitéria.
Maria Quitéria não frequentou a escola. Dominava a
montaria, caçava e manejava armas de fogo. Deflagradas as lutas de apoio à
independência em 1822, o Concelho Interino do Governo da Bahia, defendia o
movimento e procurava voluntários para suas tropas. Maria Quitéria, interessada
em se alistar, pediu permissão ao seu pai mas seu pedido foi negado. Com o
apoio de sua irmã Tereza Maria e seu cunhado José Cordeiro de Medeiros,
Quitéria cortou o cabelo, vestiu-se de homem e se alistou com o nome de
Medeiros, no Batalhão dos Voluntários do Príncipe, chamado de Batalhão dos
Periquitos, por causa dos punhos e da gola verde em seu uniforme.
Depois de duas semanas foi descoberta pelo pai, mas o
major José Antônio da Silva Castro não permitiu que ela fosse desligada, pois
era reconhecida pela disciplina militar e pela facilidade de manejar armas.
Maria Quitéria seguiu com o Batalhão para vários
combates. Participou da defesa da Ilha da Maré, da Pituba, da Barra do Paraguaçu
e Itapuã. No dia 2 de julho de 1823 quando o exército entrou na cidade de
Salvador, Quitéria foi saudada e homenageada pela população. Tornou-se exemplo
de bravura nos campos de batalha e foi promovida a cadete em 1823. Foi
condecorada no Rio de Janeiro com a Ordem Imperial do Cruzeiro do Sul, em uma
audiência especial onde recebeu a medalha das mãos do próprio imperador D.
Pedro I.
Reformada com o soldo de alferes, voltou para Bahia
com uma carta do Imperador dirigida a seu pai, pedindo que ela fosse perdoada
pela desobediência. Casou-se com um namorado antigo, o lavrador Gabriel Pereira
de Brito, com quem teve uma filha, Luisa Maria da Conceição. Viúva, mudou-se
para Feira de Santana, para tentar receber parte da herança do pai que havia
falecido em 1834. Desistindo do inventário mudou-se com a filha para Salvador,
onde morreu quase cega em total anonimato. Seus restos mortais estão sepultados
na Igreja Matriz do Santíssimo Sacramento no bairro de Nazaré em Salvador.[3]
[1]
Nota do tradutor:Maria Quitéria de Jesus. Trata-se do mais importante
depoimento pessoal acerca da famosa heroína baiana. Quase todos os estudos
sobre este vulto são “vasados sobre o escrito da ilustra inglesa” (Maria
Graham), diz o seu biógrafo. Cf. Fernando Alves, “Biografia de Maria Quitéria
de Jesus”, Salvador, 1952.
[2]
Nota do tradutor: Gonçalo Alves de Almeida. Era brasileiro, conforme declara em
seu testamento, e não português. Op. Cit. Pg. 66