Estávamos em pleno período do governo Vargas, se não enquanto ele mandava pelo menos nos dias que se seguiram ao mesmo com a aplicação de muitas de suas leis demagógicas e socialistas. Uma delas foi o rigoroso “tabelamento de preços”, congelando a economia, a exemplo dos planos econômicos desastrosos que vieram depois, como o do cruzado (governo Sarney) e o do Collor. Muito simples: os preços ficam tabelados e o governo cria um sistema policial para fiscalizar e punir quem infringir a lei e vender por preço superior ao da tabela.
Meu pai era um pobre retirante da seca nordestina que emigrou do Rio Grande do Norte para o Ceará na década de 40, e na década seguinte estabeleceu um pequeno comércio (que o povo chamava de bodega) após perder o primeiro emprego de sua vida. Semi-analfabeto, rústico e sem entender das leis, foi surpreendido pela polícia ao vender um quilo de toucinho por preço acima da tabela do governo.
Vê-se neste episódio que as maiores vítimas destas leis socialistas de controle estatal não são as pessoas de maior poder aquisitivo, mas o povo simples e humilde como meu pai. Sua sorte é que encontrou um amigo que lhe ajudou a resolver tudo favoravelmente através do famoso “jeitinho brasileiro”.
Vejam seu próprio relato:
“Autuado pela Comissão de Preços
Estava há poucos meses no comércio, não tinha experiência e tinha muito ainda que aprender. Aconteceu o seguinte. Havia comprado uns quilos de toicinho a 7 cruzeiros o quilo, e vendia ao preço de 10. Certo dia chegou um soldado da polícia, perguntou o preço do toicinho, comprou meio quilo e saiu.
Nessa época a Delegacia da Economia Popular era na Polícia, fato que ignorava. Por isso, daí a pouco apareceu o mesmo soldado acompanhado de um cabo. O recruta foi entrando e dizendo “foi aqui”. O cabo então dirigiu-se a mim e perguntou: “O senhor vendeu meio quilo de toicinho por 5 cruzeiros?” Ao afirmar que sim, ele me disse: “O senhor não conhece o preço da tabela?” Tentei explicar-lhe que era ainda novato no ramo e muitas coisas ignorava... Respondeu-me que não justificava, todos os dias era avisado pelo rádio, razão porque ia lavrar o flagrante, constituindo-se numa multa de 400 cruzeiros – valor que representava quase um terço do meu capital.
A fim de contornar a situação, apelei para os seus sentimentos, dizendo-lhe que devido ao meu comércio pequeno e a família grande pra sustentar, bem que poderia me dispensar desse prejuízo. Porém o soldado, que queria ver o circo pegar fogo, interrompeu-me, dizendo ironicamente: “Não podemos dispensar... se ele vende a mim desse preço, imagine aos outros”. Respondi-lhe a insinuação dizendo que tinha só um preço.
O cabo, que se apresentara como fiscal, disse, por fim, que eu dispunha de cinco dias para apresentar a minha defesa na Delegacia da Economia Popular. Aceita a minha explicativa, seria dispensado, caso contrário tinha mesmo de pagar os 400 cruzeiros. Não tive alternativa, assinei aquele papel, e mais parecia estar assinando a minha própria sentença.
Passei dois dias pensando numa maneira de sair daquela situação, daí, creio que iluminado mais uma vez pela luz que me guia, resolvi procurar um amigo e narrar-lhe o ocorrido. Era o compadre Altenor Câmara, padrinho da Gracinha, que me tranqüilizou dizendo que o Secretário de Segurança era seu amigo, me levaria à presença dele e tudo seria resolvido, como de fato foi mesmo.
No dia seguinte levou-me à presença do Dr. Clodoveu Maia, o então Secretário. Apresentou-me dizendo que era seu amigo e que eu lidava com um comércio pequeno e uma família grande, salientando que eu não tinha condições de pagar aquela multa.
O doutor pediu para ver o papel da intimação, leu-o e depois falou pra mim: “Quer dizer que o senhor foi multado porque vendeu meio quilo de toicinho por 5 cruzeiros?” Respondi-lhe afirmativamente. Disse-me: “Todos os dias compro desse preço”. Em seguida deu-me um cartão para apresentar ao delegado da Economia Popular: era um pedido de dispensa da multa, dirigido ao delegado, o Capitão Pôncio Leão, que tinha pouco de Pilatos, mas muito de Leão.
Ao recebe o cartão o homem descarregou toda a sua ira contra mim, mas acabou me dispensando.
Pude, enfim, respirar aliviado, agradecendo mais uma vez à minha boa Mãe por esta graça”.
(“Retirantes, Graças a Deus” – Francisco Batista Cavalcante – Editora Viseu,págs. 52/54)
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