quinta-feira, 2 de novembro de 2023

UM SERTANEJO EM APUROS POR CAUSA DA PREPOTÊNCIA ESTATAL


 


Estávamos em pleno período do governo Vargas, se não enquanto ele mandava pelo menos nos dias que se seguiram ao mesmo com a aplicação de muitas de suas leis demagógicas e socialistas. Uma delas foi o rigoroso “tabelamento de preços”, congelando a economia, a exemplo dos planos econômicos desastrosos que vieram depois, como o do cruzado (governo Sarney) e o do Collor. Muito simples: os preços ficam tabelados e o governo cria um sistema policial para fiscalizar e punir quem infringir a lei e vender por preço superior ao da tabela.

Meu pai era um pobre retirante da seca nordestina que emigrou do Rio Grande do Norte para o Ceará na década de 40, e na década seguinte estabeleceu um pequeno comércio (que o povo chamava de bodega) após perder o primeiro emprego de sua vida. Semi-analfabeto, rústico e sem entender das leis, foi surpreendido pela polícia ao vender um quilo de toucinho por preço acima da tabela do governo.

Vê-se neste episódio que as maiores vítimas destas leis socialistas de controle estatal não são as pessoas de maior poder aquisitivo, mas o povo simples e humilde como meu pai. Sua sorte é que encontrou um amigo que lhe ajudou a resolver tudo favoravelmente através do famoso “jeitinho brasileiro”.

Vejam seu próprio relato:


Autuado pela Comissão de Preços


Estava há poucos meses no comércio, não tinha experiência e tinha muito ainda que aprender. Aconteceu o seguinte. Havia comprado uns quilos de toicinho a 7 cruzeiros o quilo, e vendia ao preço de 10. Certo dia chegou um soldado da polícia, perguntou o preço do toicinho, comprou meio quilo e saiu.

Nessa época a Delegacia da Economia Popular era na Polícia, fato que ignorava. Por isso, daí a pouco apareceu o mesmo soldado acompanhado de um cabo. O recruta foi entrando e dizendo “foi aqui”. O cabo então dirigiu-se a mim e perguntou: “O senhor vendeu meio quilo de toicinho por 5 cruzeiros?” Ao afirmar que sim, ele me disse: “O senhor não conhece o preço da tabela?” Tentei explicar-lhe que era ainda novato no ramo e muitas coisas ignorava... Respondeu-me que não justificava, todos os dias era avisado pelo rádio, razão porque ia lavrar o flagrante, constituindo-se numa multa de 400 cruzeiros – valor que representava quase um terço do meu capital.

A fim de contornar a situação, apelei para os seus sentimentos, dizendo-lhe que devido ao meu comércio pequeno e a família grande pra sustentar, bem que poderia me dispensar desse prejuízo. Porém o soldado, que queria ver o circo pegar fogo, interrompeu-me, dizendo ironicamente: “Não podemos dispensar... se ele vende a mim desse preço, imagine aos outros”. Respondi-lhe a insinuação dizendo que tinha só um preço.

O cabo, que se apresentara como fiscal, disse, por fim, que eu dispunha de cinco dias para apresentar a minha defesa na Delegacia da Economia Popular. Aceita a minha explicativa, seria dispensado, caso contrário tinha mesmo de pagar os 400 cruzeiros. Não tive alternativa, assinei aquele papel, e mais parecia estar assinando a minha própria sentença.

Passei dois dias pensando numa maneira de sair daquela situação, daí, creio que iluminado mais uma vez pela luz que me guia, resolvi procurar um amigo e narrar-lhe o ocorrido. Era o compadre Altenor Câmara, padrinho da Gracinha, que me tranqüilizou dizendo que o Secretário de Segurança era seu amigo, me levaria à presença dele e tudo seria resolvido, como de fato foi mesmo.

No dia seguinte levou-me à presença do Dr. Clodoveu Maia, o então Secretário. Apresentou-me dizendo que era seu amigo e que eu lidava com um comércio pequeno e uma família grande, salientando que eu não tinha condições de pagar aquela multa.

O doutor pediu para ver o papel da intimação, leu-o e depois falou pra mim: “Quer dizer que o senhor foi multado porque vendeu meio quilo de toicinho por 5 cruzeiros?” Respondi-lhe afirmativamente. Disse-me: “Todos os dias compro desse preço”. Em seguida deu-me um cartão para apresentar ao delegado da Economia Popular: era um pedido de dispensa da multa, dirigido ao delegado, o Capitão Pôncio Leão, que tinha pouco de Pilatos, mas muito de Leão.

Ao recebe o cartão o homem descarregou toda a sua ira contra mim, mas acabou me dispensando.

Pude, enfim, respirar aliviado, agradecendo mais uma vez à minha boa Mãe por esta graça”.


(“Retirantes, Graças a Deus” – Francisco Batista Cavalcante – Editora Viseu,págs. 52/54)

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