quinta-feira, 2 de novembro de 2023

UM SERTANEJO EM APUROS POR CAUSA DA PREPOTÊNCIA ESTATAL


 


Estávamos em pleno período do governo Vargas, se não enquanto ele mandava pelo menos nos dias que se seguiram ao mesmo com a aplicação de muitas de suas leis demagógicas e socialistas. Uma delas foi o rigoroso “tabelamento de preços”, congelando a economia, a exemplo dos planos econômicos desastrosos que vieram depois, como o do cruzado (governo Sarney) e o do Collor. Muito simples: os preços ficam tabelados e o governo cria um sistema policial para fiscalizar e punir quem infringir a lei e vender por preço superior ao da tabela.

Meu pai era um pobre retirante da seca nordestina que emigrou do Rio Grande do Norte para o Ceará na década de 40, e na década seguinte estabeleceu um pequeno comércio (que o povo chamava de bodega) após perder o primeiro emprego de sua vida. Semi-analfabeto, rústico e sem entender das leis, foi surpreendido pela polícia ao vender um quilo de toucinho por preço acima da tabela do governo.

Vê-se neste episódio que as maiores vítimas destas leis socialistas de controle estatal não são as pessoas de maior poder aquisitivo, mas o povo simples e humilde como meu pai. Sua sorte é que encontrou um amigo que lhe ajudou a resolver tudo favoravelmente através do famoso “jeitinho brasileiro”.

Vejam seu próprio relato:


Autuado pela Comissão de Preços


Estava há poucos meses no comércio, não tinha experiência e tinha muito ainda que aprender. Aconteceu o seguinte. Havia comprado uns quilos de toicinho a 7 cruzeiros o quilo, e vendia ao preço de 10. Certo dia chegou um soldado da polícia, perguntou o preço do toicinho, comprou meio quilo e saiu.

Nessa época a Delegacia da Economia Popular era na Polícia, fato que ignorava. Por isso, daí a pouco apareceu o mesmo soldado acompanhado de um cabo. O recruta foi entrando e dizendo “foi aqui”. O cabo então dirigiu-se a mim e perguntou: “O senhor vendeu meio quilo de toicinho por 5 cruzeiros?” Ao afirmar que sim, ele me disse: “O senhor não conhece o preço da tabela?” Tentei explicar-lhe que era ainda novato no ramo e muitas coisas ignorava... Respondeu-me que não justificava, todos os dias era avisado pelo rádio, razão porque ia lavrar o flagrante, constituindo-se numa multa de 400 cruzeiros – valor que representava quase um terço do meu capital.

A fim de contornar a situação, apelei para os seus sentimentos, dizendo-lhe que devido ao meu comércio pequeno e a família grande pra sustentar, bem que poderia me dispensar desse prejuízo. Porém o soldado, que queria ver o circo pegar fogo, interrompeu-me, dizendo ironicamente: “Não podemos dispensar... se ele vende a mim desse preço, imagine aos outros”. Respondi-lhe a insinuação dizendo que tinha só um preço.

O cabo, que se apresentara como fiscal, disse, por fim, que eu dispunha de cinco dias para apresentar a minha defesa na Delegacia da Economia Popular. Aceita a minha explicativa, seria dispensado, caso contrário tinha mesmo de pagar os 400 cruzeiros. Não tive alternativa, assinei aquele papel, e mais parecia estar assinando a minha própria sentença.

Passei dois dias pensando numa maneira de sair daquela situação, daí, creio que iluminado mais uma vez pela luz que me guia, resolvi procurar um amigo e narrar-lhe o ocorrido. Era o compadre Altenor Câmara, padrinho da Gracinha, que me tranqüilizou dizendo que o Secretário de Segurança era seu amigo, me levaria à presença dele e tudo seria resolvido, como de fato foi mesmo.

No dia seguinte levou-me à presença do Dr. Clodoveu Maia, o então Secretário. Apresentou-me dizendo que era seu amigo e que eu lidava com um comércio pequeno e uma família grande, salientando que eu não tinha condições de pagar aquela multa.

O doutor pediu para ver o papel da intimação, leu-o e depois falou pra mim: “Quer dizer que o senhor foi multado porque vendeu meio quilo de toicinho por 5 cruzeiros?” Respondi-lhe afirmativamente. Disse-me: “Todos os dias compro desse preço”. Em seguida deu-me um cartão para apresentar ao delegado da Economia Popular: era um pedido de dispensa da multa, dirigido ao delegado, o Capitão Pôncio Leão, que tinha pouco de Pilatos, mas muito de Leão.

Ao recebe o cartão o homem descarregou toda a sua ira contra mim, mas acabou me dispensando.

Pude, enfim, respirar aliviado, agradecendo mais uma vez à minha boa Mãe por esta graça”.


(“Retirantes, Graças a Deus” – Francisco Batista Cavalcante – Editora Viseu,págs. 52/54)

terça-feira, 29 de agosto de 2023

A CLASSE MÉDIA

 




Fala-se muito hoje em dia em preconceito social. Pois bem, pertenço a uma classe social desprezada e entregue aos odiosos preconceitos sociais: trata-se da classe média.  Não vou aqui querer estabelecer algum parâmetro de quem pertence ou não a esta classe, informando, por exemplo, qual seria a renda mensal própria a ela. Nada disso. Poderei cometer o mesmo erro de certos economistas, como os do PT, que afirmam que uma renda superior a dois salários mínimos, por exemplo, classifica o sujeito como classe média. Dizem  também que quem ganha acima de R$ 350,00 por mês não passa fome. Esta generalização de critério é falsa. Quem ganha dois salários mínimos e mora em São Paulo, se for casado e tiver filhos, passa fome. Mas, se morar, por exemplo, em qualquer cidadezinha do sertão nordestino poderá até ficar um pouco mais tranqüilo. E se ganhar apenas R$ 350,00 acho que nem ma floresta amazônica o cara consegue ter uma vida digna.  Então, nada de parâmetros generalizadores. 

Também o patrimônio não poderá servir de parâmetro.  O sujeito pode ser milionário, quer dizer, possuir um patrimônio de dois milhões ou mais, mas não usufruir nenhuma renda do mesmo. Pode até passar fome, pois existem muitos patrimônios que só dão prejuízos e endividam o possuidor. 

Podemos apenas deduzir que pertence a esta classe quem ganha um pouco mais do que o comum da população e trabalha para manter um padrão de vida digno, ou até mesmo acima do normal. A palavra “trabalha” diz tudo. Trata-se, portanto, de uma classe trabalhadora. 

Graças a esta classe uma multidão de gente de classes mais humildes consegue viver. Sustentamos os empregados domésticos, os porteiros de apartamentos, os frentistas de postos de gasolina, os coletores de lixo, os vendedores ambulantes e até os flanelinhas. Ainda sobra um dinheirinho para ajudar alguma sociedade de filantropia ou alguma família desamparada. 

Mas não é só isso. Sustentamos também as empresas de serviço público, de luz e água, e de esgotos. Graças à nossa classe social existem boas escolas no país, ajudando o próprio governo no problema da educação. Também sustentamos uma boa quantidade de empresas de planos de saúde, tirando do governo a obrigação de nos dá assistência médica pública, por sinal muito ruim.

Sim, mas a classe média vai mais longe. É ela a que  mais paga impostos, ou tirados de seus salários em descontos diretos ou então através dos chamados impostos indiretos embutidos nas mercadorias que compra. A cesta básica de quem mora num bairro de classe média é muito mais cara do que quem mora em bairro pobre, pois os preços são bem mais altos, pagando-se, portanto, mais impostos e encargos sociais. Por causa disso, sustentamos também milhares de políticos que administram nosso país, pois é com os impostos que pagamos que eles recebem seus salários, e também roubam.  

Até os bancos se mantêm graças à classe média, pois é ela que consegue manter reservas guardadas em quantidade suficiente para que eles obtenham seus lucros. Na área financeira é a classe média também que faz funcionar os cartões de crédito e sistemas de crédito espalhados pelo país. 

A classe média também sustenta uma infinidade de atividades de lazer, como bares, lanchonetes, hotéis, empresas de transporte aéreo e terrestre. Faz o turismo produzir milhares de empregos. 

Vamos fazer uma análise de uma situação imaginária, comparando quanto paga de impostos alguém de classe média, que ganhe em torno de R$ 6.000,00 por mês, em confronto com uma empregada doméstica que trabalha em sua casa e ganha, por exemplo, R$ 1.000,00 por mês. Colocamos este valor em números redondos para facilitar os cálculos.

1. O patrão, nesse caso um assalariado também, paga, além de IR (entre 18 a 20%), Imposto Predial, licenciamento de veículo, seguros, luz, água e telefone, condomínio, escola para os filhos, plano de saúde, remunera a própria empregada doméstica e mais algum outro trabalhador que possa manter a seu serviço;

2. Com o salário que a mesma recebe de um sujeito classe média ela paga simplesmente INSS, que é apenas 8%, não estando sujeita a nenhum de outros tributos, inclusive, se possuir imóvel próprio, está isenta de IPTU (isenção  dada em muitas cidades por ser de pouco valor), e também do pagamento de contas de luz em alguns casos; a mesma pode não ter direito, mas haverá sempre alguém desempregado em sua casa que recebe gratuitamente o “vale gás”, o bolsa família ou qualquer outro benefício social dado pelo governo; coisa que, em nenhuma hipótese, alguém da classe média tem acesso; 

3. Sim, mas há os impostos indiretos, embutidos nos produtos e nos serviços adquiridos. Poder-se-ia dizer que os produtos da cesta básica de uma pessoa de classe humilde  recebem a mesma tributação de outros comprados por uma da classe média, mas não é verdade. No primeiro caso, a nossa empregada doméstica, por morar em bairro pobre, paga menos pelas mercadorias de consumo próprio e, por isso, menos impostos. 

Não entendo por que razão tanta gente na mídia e economistas famosos andam dizendo por aí que quem paga mais impostos é a classe pobre. Onde?

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

HIPOCONDRIA SOCIAL

 



Mania ou paranoia por doenças. Isso seria a denominação de um sintoma de comportamento social, aliás muito em voga hoje. Minha mãe tinha algo disso, pois invariavelmente tinha que ir aos médicos por qualquer sintoma que sentisse, por menor gravidade que fosse, sempre julgando que a coisa estava pior. Certo dia ela foi consultada por um médico e o mesmo lhe disse que ela nada tinha, estava em perfeita saúde, ao que ela respondeu: “Como não estou doente? O senhor é médico coisa nenhuma! Vou procurar outro médico!”  Esse tipo de personalidade, ou melhor, esse tipo de comportamento social tornou-se não somente muito comum nas pessoas de hoje, mas uma verdadeira febre, algo assustadoramente dominante.

De tal sorte que foi uma das principais motivações do pânico criado na pandemia do Covid: a hipocondria social serviu para causar pânico na sociedade, o que ocorre até hoje.

Sei que há tal mentalidade, pois convivo com algumas pessoas que sofrem de tal fenômeno,  mas nunca tinha convivido com alguém infestado dela de uma forma tão intensa como estou vivendo agora.  Já vi muitos que tiram os sapatos ao entrarem em casa, deixando-os na porta de entrada, tomando uma infinidade de remédios após alguns espirros, exagerando na limpeza geral do corpo ou das roupas, etc., mas nunca tinha algo igual ao que presencio agora.

Quando essa pessoa apareceu na minha casa estava de máscara, apavorada ainda por causa da pandemia. Mas julguei aquilo como coisa normal, pois há muitas pessoas que ainda pensam que a pandemia ainda persiste, embora se saiba que há mais de dois anos que o vírus foi embora ou se transformou em outros. Mas, quando os dias foram se passando essa pessoa começou a revelar outros comportamentos estranhos.  Muito ciosa da limpeza carrega uma enorme bagagem de produtos essenciais e até exageradamente essenciais para o asseio corporal.  Quando se levanta, ainda de manhã (não cedo, porque corda sempre tarde), carrega sua maletinha para o banheiro e demora horas em seus asseios. De longe a gente ouve por vários minutos o barulho da escovação dos dentes. Mas não para por aí, seguido de outros procedimentos que a gente não sabe quais são, mas certamente são pastas ou pomadas com finalidades de proteção da pele e outros fins.

Sua comida é feita por ela mesma, pois teme as refeições feitas por outras pessoas que poderiam lhe trazer doenças. Guarda uma enorme quantidades de potes plásticos na geladeira contendo alguns produtos, os quais desconheço o que são. Se vai pra rua passar da hora do almoço, leva sempre uma marmitinha com aquela comida especial.  Não sei o que contém ali, mas ela mesma vive falando que não come tal coisa e tal outra porque faz mal. Por exemplo, não come carne. É vegetariana.  Certo dia lhe adverti que tomasse cuidado com as comidas vegetais, pois aqueles produtos vêm da fonte produtora contendo muitos micróbios ou outros elementos nocivos à saúde. Ao que ela respondeu que todos seus produtos são de origens naturais e não fazem mal à saúde. Não adiantava argumentar, a coisa leva até o fanatismo.

Sua roupa é ela mesma que lava, pois tem que ser uma lavagem especial a fim de não deixar nenhum resquício de impureza ou vírus da rua. Assim, chinelos, sapatos, roupas, objetos de uso pessoal (até os brincos ou pulseiras?) só usa raramente os seus, não tocando nos das demais pessoas com receito de se contaminar.

Ao deitar-se corre o olhar pelo quarto para ver se há algum mofo ou mau cheiro nas paredes. Para proteger-se disso usa um produto que produz com cheiro no ar e evita, segundo ela mesma, os maus odores e os micróbios tão comuns nas paredes úmidas.

Muitos dos cuidados de minha hipocondríaca não estão relatados porque ela não os disse todos ainda, mas imagino que chega ao exagero. Por exemplo, a vi batendo os pés com força no chão, mas de uma forma forte e exagerada. Pensei até que tinha tomado um tropeço. Mas, ela mesma disse que batia os pés daquela forma, com força e demoradamente, a fim de retirar deles a poeira ou qualquer sujeira que possa entrar dentro de casa.

Se a alma dela, quando morrer, puder sentir o mal cheiro que vai exalar seu cadáver vai sofrer muito mais do que quando vivia , pois essa hipocondria doentia poderá ultrapassar os limites desta vida e invadir a outra.

Eis um exemplo de um mal social muito divulgado e praticado hoje: HIPOCONDRIA SOCIAL

 


quinta-feira, 7 de julho de 2022

O SONHO DE LIBERDADE, O QUE PODE NOS TRAZER?

 

    (


(Transcrevemos um pequeno conto, escrito por uma escritora católica baiana do início do século XX, onde se realça o que pode trazer para o homem o exagerado sonho de liberdade.)


O sonho de Fulgêncio 

Amélia Rodrigues

Aquele tresloucado Fulgêncio tinha fugido da casa de seu senhor.

E, todavia, o seu senhor era bom; tão bom que não se podia absolutamente imaginar outro ideal de senhor. Criara o servo em seus braços, desde pequenino; tratara-o nas moléstias; dera-lhe a alegria da infância, prados em que corresse, afetos que o confortassem; ensinara-lhe muitas coisas úteis, letras e artes; mostrara-lhe as fontes puras da felicidade perfeita...

Mas, apenas o servo ficou rapaz, leu ou disse-lhe alguém que a servidão era uma coisa triste e feia e cruel, mesmo naquelas condições honrosíssimas; sopraram-lhe aos ouvidos a palavra “liberdade”, e essa palavra agitou-lhe os nervos, num deslumbramento contínuo.

- Foge!... quebra as cadeias! Governa-te a ti mesmo, infeliz! Não curves a cabeça a poder algum! És dono de teu ser, de teus sentidos, de tua vontade. Oh, que bela conquista, a independência!

Assim lhe cantara dentro do cérebro a voz da mocidade, o sangue quente dos desejos sôfregos e, fora, a voz tentadora de outros libertos.

Contudo, uma réstia de luz teimava em atravessar-lhe a mente O seu olhar inquieto espraiava-se longe, examinando o mundo.

- Ser livre!... fazer o que quiser, sem dar contas a ninguém!... Sim, deve ser essa a felicidade completa. Posso fugir, posso; mas... onde irei que deixe de ser servo?

Em toda parte há tiranos...

- Entrarás pelas brenhas... beberás a chama do sol e os aromas da natureza virgem, grandiosa, embriagante. A natureza é tua mãe, portanto deve ser a tua única senhora. No seio dela serás rei, forte como os leões, alcandorado como as águias, dormindo embora ao relento, mas respirando a plenos haustos a ventania dos píncaros ou a brisa meiga dos vales...

E o servo sonhou, noites e noites mal dormidas, com o espectro do sol da Liberdade, um espectro em forma de mulher a sorrir, com veste de íris e largas asas de borboleta espalmadas no horizonte sem fim... e de seus lábios espiralou um hino, um grito, apóstrofe:

- Oh Liberdade! És minha deusa, eu te adoro!

A face amorável do senhor tornou-se-lhe odiosa; a casa parecia-lhe estreita, mesquinha, deprimente, sem futuro, sem atrativos; a comida já não tinha sabor: os companheiros de lavoura davam-lhe tédio, com os seus ares de calcetas imundos e simplórios...

 

*                            *                                  *

Fugiu. Internou-se nos matagais. Comeu frutos áureos e doces, pendurados em ramos de esmeralda. Bebeu água cristalina em rios mansos, à sombra de cipoais em flor; embriagou-se com o sono de bromélias ardentes ou com o cheiro capitoso das palmeiras novas; ouviu trinados de aves, fragor de trovões, estrondo de torrentes a cair espumando prata...

E julgou-se feliz, e cantou, com voz de stentor que atroava em penedias e vales, o hino que o seduzira:

- Oh Liberdade! És minha deusa, única! Eu te adoro!...

 

     *          *          *

 

Passaram os tempos – tudo passa!... -  e mudou-se o cenário. Já não eram tapetes de relva, eram seixos agudos que os seus pés encontravam. Fez-se noite no céu; fez-se noite nos campos. Rugiam-lhe em torno panteras e tigres, de olhar vermelho e dentes a ranger...  Alapardava-se em furnas lobregas para dormir, se dormia. Tinha fome e sede, e já não achava nem frutos, nem água fresca rolando em pérolas na concha azul da rocha ao seu alcance...

Deu, depois, em brejos negros, em charnecas áridas. Mordiam-no insetos, serpentes se lhe enrolavam no corpo, asquerosas, geladas, cortantes... A roupa lhe caíra em pedaços...

E vinha-lhe à memória um retalho de versos lidos outrora, o diálogo entre o Lavrador e o Peregrino, do grande poeta luso(1) que, com outros, lhe ensinara o amor à Liberdade:

 O Lavrador

- Ó Senhor tão moço, d’olhos cor d’esperança,

Ides de caminho para algum lugar?

O Peregrino

- Vou dar volta ao mundo...

O Lavrador

- Sem arnês ou lança?

- Ó Senhor tão novo, d’olhos cor d’esperança

Penas e misérias é que ireis achar!

Quais seriam esse arnês e essa lança tão preciosas ao combate da vida? A fé talvez?... Mas a fé, sobretudo a fé cristã, já não fizera branca-rota? Assim lh’o tinham afirmado os companheiros de prazer. Mesmo aquele poeta...

Não! ... a fé traz consigo a lei; a lei é uma cadeia: não pode ser elemento da felicidade. Para ser feliz... basta ser livre!...

 E suspirou, repetindo:

- Liberdade, és minha deusa única.  Eu te adoro!

Caiu um dia, enfim, exausto, quase morto, no fundo de paulento barranco. Lá ficou só, muito tempo. Seus amigos, os pássaros, voavam longe; suas namoradas, as flores, perfumavam outros viandantes. A fome era atroz, o frio era intenso... Sentia-se velho, alquebrado, incapaz de um esforço. O desespero retorcia-lhe os membros; clarões de raiva impotente lhe passavam nos olhos.

E gemia:

-Oh! Natureza! Não és tu minha mãe? Não foi de ti que nasci? Por que me matas? Qual foi meu crime? Amar a liberdade?... Mas a liberdade não é direito do homem? Teu maior e mais belo direito? Eu quis viver com teus filhos todos, Natureza! Os filhos que ficam no teu ninho, apegados contigo! E morro sem que tu me consoles. Mas a vida não é um dom teu, um dom que eu devia, até o fim, aproveitar para o gozo, como os meus irmãos animais?

E rugia, mordendo a lama, sentindo nos membros trôpegos o contato dos vermes.

- Meus irmãos todos são felizes em ti, mãe Natureza, quando o homem não os faz sofrer. Estes vermes que comem vasa... estes lagartos cinzentos que moram nos troncos podres... Por que razão só o homem, teu filho mais nobre, mais rico e perfeito, só o homem te encontra dura, cruel, indiferente aos gritos de fome... ou de gula?... Por que razão?

Veio-lhe um calapso (2), um momento de trégua na sua agitação. Fez-se-lhe algo de bonança no cérebro; pensou mais calmo e recordou:

- Eu era servo. Sou servo ainda. Não há fugir à lei que me prende. Todavia, lá em casa, era servo-filho. Aqui... sou servo-escravo. Escravo estrangeiro... miserável... esmagado.  Lá... não me faltava nada. Tinha tudo, tudo o que podia ter com justiça e legítimo prazer. Desejei mais do que isso. A visão da Liberdade estonteou-me.  Oh, sim!... ser livre!... Mas... livre como? Eis preso de novo, e sempre pior. Livre para que, afinal de contas, se lá meu senhor me amava e aqui não tem quem me ame; se lá eu tinha alimentos e aqui morro ao desamparo; se lá eu sorria inocente, aqui choro de remorsos, sem ter quem me enxugue as lágrimas... Li outrora, no Evangelho de Cristo, a página do Filho Pródigo. É justamente o meu caso. Ele voltou à casa paterna. Voltarei também?... Por que não?... Meu Senhor é tão bom! Farei um esforço para sair desta lama. Sim, bastará um esforço...

E, animado, puxou os pés que estavam presos ao barro pegajoso. Sorriu. A recordação da casa onde vivera a infância perpassou-lhe no pensamento, em traços fortes e consoladores.

Viu-a, toda branca, lá longe, - qual em contos de fada, a luzinha d’oiro no cimo da montanha, dizendo ao perdido nas trevas que em seu seio havia um abrigo. Como se lembrava!... Aqui era o pátio vasto... os jardins cheios de angélicas; ali o milharal espigando... os parreirais pesados de uvas... e pertinho, o lar, a chama alegre da lenha seca, o cheiro da sopa quente após a labuta diária...

Suspirou. Olhou em torno e sentiu repugnância. Desprendeu as mãos do paul, fraco, trêmulo, receoso, mas com brilhos de esperança no olhar. Queria subir a montanha, entrar novamente naquela mansão de paz e conforto.

Em seguida olhou para si mesmo e... teve horror.

- Estou nu – murmurou – tenho a pele coberta de escaras, chagas ainda... crostas de barro... Sinto que as pernas se me vergam. É tarde!... É tarde... não posso...

Agachou-se no chão, desesperado.

- Ele me expulsará, por indigno. Afastará de mim o seu rosto!... Não vou. Morrerei aqui. Pelo menos, tudo isto é meu. Pedras, lodo, bichos nojentos, tudo é meu. Acostumei-me ao cheiro bruto destas coisas corruptas... cheiro que outros chamam fétido e eu chamo perfume. E nisso gozo ainda minha liberdade. Sou livre, chamo-lhes como me apraz!

Pendeu a fronte, fechou as pálpebras... e apesar disso via ao longe, via sempre a luzinha da casa senhorial, tão meiga, tão suave, em cima da montanha...

- Ali está o perdão, o amor, a paz... bem o sei; não posso calar, no meu íntimo, a voz que m’o diz. Meu senhor é bom... infinitamente bom... Que importa? Se a liberdade é a guerra, quero a guerra, porque adoro a Liberdade!

Engalfinhou as mãos na borda de um calhau limoso e escorregou de novo no tremedal. Sentia vertigens mórbidas... sabia que estava louco, absolutamente louco, mas deixou-se descer...

E desceu... e a luzinha continuava a brilhar, muito quieta, pondo um fio de ouro na escuridão ambiente, fio que vinha tocar quase a cabeça de Fulgêncio.

Ele percebeu, e chorou.

- Meu Senhor!... Oh, meu Senhor!... tu me chamas?... Por que te fugi?!... Onde estás?!... Anda... vem cá... ah, não!... não venhas!... Fica em tuas alturas... Apaga essa luz... Tira-a de cima de mim!...  Não quero vê-la... não quero!... É a razão, é a fé!... Mas aqui estou cativo em redes fatais... Agora essa luz!

E a luzinha apagou-se... e Fulgêncio afundou-se ainda mais no barranco negro...

Extinguiu-se-lhe a consciência, a idéia da vida moral. Engoliu vasa, e achou-a gostosa. Sentiu sanguessugas no peito e acho delícia em suas mordeduras. E foi descendo... até que a vasa o sepultou para sempre...

Fulgêncio,  o servo, é a alma pecadora – a alma do século de hoje.

Feita para Deus, ela foge de Deus, atraída pela voz de sereia da falsa liberdade.

Foge de Deus para gozar à larga, e afunda-se nos pântanos mais asquerosos; torna-se vil, e nem percebe a própria degradação, ou percebe-a fracamente.

Coitadinha!

A luz da graça lhe aparece enfim, no cimo da montanha da fé. É a única estrela na sua noite pesada de treva e de abandono. Ela a vê, suavíssima; compreende-a, deseja ir até onde está a mansão salvadora, mas o vício, o mau hábito da rebeldia a tem cativa, a ela que sonhara ser livre, inteiramente livre!

Precisamente. Será sempre escrava, e da pior das escravidões.

Ah! Se ela voltasse ao lar donde fugira, ao coração de seu Senhor e de seu Pai, que feliz seria de novo!...

Almas que refulgistes ao sair do batismo cristão e por desgraça agora estais caídas nos charcos do mal, coragem! Quebrai os laços, desprendei-vos da lama, e subi, montanha acima, até os braços do vosso Criador. Ele vos espera e há de receber-vos em festa e coroar-vos de rosas imortais.

Homens do século de hoje, Fulgêncios sequiosos de gozo e de independência, não esqueçais que a verdadeira liberdade é a dos filhos de Deus. Procurai o reino de Deus, se quereis ser livres e atingir o vosso alto destino.

Notas: 1) Trata-se da obra “Os Simples”, de Guerra Junqueiro.

            2) “calapso” é como consta no original; seria “colapso”?

(Transcrito de “Do Meu Archivo – Contos e Phantasias” – Livraria Editora N. S. Auxiliadora – Salvador(BA), 1929 – págs. 208/216)





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