Por: Jurandir Josino Cavalcante
IX – Sofrimento
Do instante em que caiu doente, ou melhor, em que desceu doente, até o momento de dizer adeus a este mundo o meu pai sentiu muita dor. Dor muito aguda, dor profunda, dor insuportável, dor atroz... Dor! Que dor? Dizem, dor é sempre dor. A dor incomoda, porque não passa, e o ser tem que descansar, pensar, raciocinar, sorrir, querer. A dor não deixa. Ela vem de montanha-russa, num carrinho veloz, que desce e sobe, sobe e desce. Quando desce, o homem inspira, quando sobe, expira. O meu pai quase que só expirava, tamanha era a dor. Doía andar, doía viver. Sua vida era um rosário de ais.
Qual o significado dessa dor sofrida pelo meu pai? Era um bem, um aviso de que algo não ia bem? De que os seus ossos lá dentro estavam corroídos, malpostos, imprestáveis para uso? Ou era um mal? Porque doendo fazia sofrer?
A minha escolha diz que era um mal, porque o bem para ser bem tem que ser bom, e ninguém, no seu estado psíquico normal, sorve o cálice da dor com alegria. Se avisa de que ocorre anomalia, enquanto aviso, visto isoladamente, tem sua utilidade. É como alguém que adverte sobre o início de um incêndio. Não está escrito que a advertência vai evitar o domínio total do fogo. Apenas permite que se tomem as providências cabíveis.
No “incêndio” de meu velho pai foi a dor incômoda e persistente quem deu o aviso. Ela como que usou um ferrão, pontiagudo e maligno, e, sem descanso, foi avisando, e só parou de avisar quando se extinguiu o incêndio medonho, no mesmo instante em que se apagou a vítima.
Há a destacar duas categorias dos que avisam do incêndio. Quando o aviso vem de alguém que está em chamas está na própria vítima o agente do aviso. Isto não se dando quando o aviso vem de agente estranho, que não participa diretamente do sinistro. No primeiro caso, assemelha-se à dor, pois é ela mesma quem avisa do mal funcionamento do organismo, sendo parte e estando dentro do próprio indivíduo. A dessemelhança está em que a dor não parece querer a extinção da malignidade, pois é filha dela mesma, apenas denunciando sua presença, como a dizer: “Estamos aqui”. Quando desaparece, o ser se curou; quando não, vai com ele até o último suspiro.
Foi assim com o meu pai: a dor, companheira, fiel, no seu labor de agente corrosivo, na destruição inclusive da vontade de resistir, promovia o desânimo e o alheamento a tudo. Interessava somente aplacá-la, instrumento desafinado a atrapalhar a execução da sinfonia da sua vida. Podemos afirmar, embora soubéssemos que havia por detrás daquela dor um órgão doente, que a alimentava, que a preocupação com a dor era maior do que com a doença em si. Até mesmo dos médicos que o atenderam. Pois ela é que fazia sofrer, que fustigava o papai.
Discute-se qual a dor que mais dói: dor de dente? Dor de parto? Dor da morte? É difícil decidir-se que a que mais dói é a dor que não se sente. A que mais dói, pois, deve ser a dor que está a doer, até mais do que a que já doeu um dia. A de dente, quem não sabe? A de parto, há mulher que a não sentiu, sabe-se. A da morte, quem a sentiu que a possa descrever? Excetue-se a dor de parto, “privilégio” do sexo feminino, papai experimentou de muitas dores, inclusive da morte, porque este é o destino de todos nós, e foi o seu. Na sua especificidade, a dor do meu pai se chamava lombalgia ou lumbago, ou ainda dor ciática, que caracteriza as dores na região lombar. Havia também a ciatalgia, que era quando ela escorregava para a perna. Estas dores evoluíram, de aguda, subaguda e, para o final, crônica. Mas, que importava explicação se não lhe dava o lenitivo para extinguir o sofrimento? Este deveria ser o pensamento de meu pai, diante das explicações científicas. Mas foi paciente até o fim, apenas com um protesto monocórdico, choroso e triste: Ai... ai... ai!
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