domingo, 31 de agosto de 2008

Homenagem póstuma de um filho (XII)

Horto das Oliveiras?


Por: Jurandir Josino Cavalcante

Deixara lá o meu velho pai com os seus pensamentos, doente, alquebrado, largado naquele negro condomínio, de onde os condôminos saíam divididos entre o céu e a terra. Quando o céu os chamava, estavam redimidos, pagas a bom preço as penas corporais; quando não, iam para aquela outra comunidade, de almas enegrecidas pela má vida, pelos descaminhos, condenadas a estar num fogo que dói sem destruir, e que, privadas da fonte de todos os bens, da fonte de todo o amor, iam ser infelizes para sempre.
Mas... que digo? Há pouco punha o meu pai no famoso Jardim de Getsêmane, agora vislumbro-o padecente num “negro condomínio”...
A resposta tiro-a do dia seguinte.
Quando na terça-feira fui visitá-lo a cena que presenciei era mais para imaginar que a paixão atingira o seu clímax, com sua crucifixão. Estava de braços abertos em cruz, amarrados os punhos nos flancos da cama, as pernas também atadas, lívido, não como um cadáver, mas como um ser vivo que estava a morrer. De seu abdome saía uma sonda, fixada ao corpo por uma confusão de esparadrapos que se desencontravam em todas as direções, os pés nus... aparentava dormir o sono dos justos, mas dos justos ainda não justiçados, porque o seu resfolegar era de quem esperava o amparo de Deus, que apazigua todos os corações.
Sim, horto, “negro condomínio”, calvário, o caminho era pelo menos o de um outro Cristo, que prometia elevar-se dali para o Céu. Não para redimir a “sua humanidade”, mas para ser dela o seu representante, como o foi tão bem aqui na terra.
Toquei na sua perna e abriu maquinalmente os olhos.
- Meu filho!
- A bênção, meu pai. O senhor está bem?
Não me recorda o que respondeu, porque voltou a dormir imediatamente, roncando com um estertor medonho. Peguei-lhe de novo na perna, pois desejava ouvir-lhe as queixas, saber como andavam as dores, ouvir-lhe as derradeiras palavras. Mais uma vez se me apagou o que aconteceu e o que me disse, tão grande era a emoção.
Quarta-feira, pouco diferiu do dia anterior, exceção da piora que se notava na sua aparência geral.
O que diz o prontuário médico desse dia:
“08:50 h aceitou 150ml de leite
09:50h aceitou salada de frutas, mais 40ml de água
12:05h aceitou pouco almoço, mais 100ml de água
Observações:
No segundo dia de UTI, para iniciar diálise peritonial, com diagnóstico de insuficiência renal aguda. Consciente, parcialmente orientado, cooperativo, tarquicárdico, apnéico, afebril. P.A. (pressão arterial) de 130 X 70... etc.
Em oxigenoterapia por cateter nasal. Aceitando a dieta oferecida. Não conciliou bem o sono e o repouso durante a noite. Evacuou ontem, em pouca quantidade, semi-pastosa escurecida. Sem diurese desde ontem à noite.
17:30h Consciente, respondendo coerente às solicitações verbais, ... , afebril, apnéico, cooperativo. Sem diurese e evacuações no período da tarde, aceitando bem a dieta oferecida, 150ml de sopa. Em oxigenoterapia por cateter nasal...
24:30h Consciente, orientado, respondendo coerente as solictações verbais. Hipotérmico, taquicárdico...”
O sono não conciliado lhe dera uma noite comprida, a não acabar mais. De manhã, veio fome e sede. Mas o que seria, afinal, manhã, tarde e noite, para uma alma num ambiente penumbroso, onde não entrava nem esperança de luz solar? Antes uma divisão engenhada pela ansiedade, que pela presença ou ausência do astro-rei. A cabeça indicava as mudanças do tempo e o corpo pedia a satisfação das necessidades. E que seria igualmente fome e sede num trapo humano, de dores malferido, como um prisioneiro, chagado pelos açoites de suas moléstias, imobilizado numa cama, afastado de seus entes queridos, daquele seu mundo vegetal, de seus pobres “assistidos”, de seus amigos vicentinos, do mundo? Era o meu pai este homem, que me gerara, que me vira nascer, que se emocionara com os rebentos que lhe nasceram, para povoar o lar e a vida. Estava lá, perinde ad cadáver, quer dizer, “consciente, orientado, respondendo coerente as solicitações verbais”, a mercê, enfim, das graças celestes, das bênçãos de Deus, único refrigério, nesse terrível deserto.
As consolações celestes são para todos os instantes, e ele, como um ser temente a Deus, cria-as abundantes nesses dias aflitivos, mas faltava-lhe outro refrigério, uma ausência que ele não sabia explicar, como se um pedaço de si mesmo estivesse faltando. Dores e mil incômodos impediam-no de resolver esta equação, um vazio que era igual a qualquer coisa inexplicável, um buraco negro que lhe atravessava o coração, como mais uma doença não detectável pela ciência, tampouco curável por ela, e que tinha uma igualdade, uma incógnita até então insolúvel. Na tarde deste dia teve a resposta que procurava, e quando ela veio, os seus olhos, ultimamente tão fechados e tristes e tímidos, quiseram eles mesmos falar, contrariando a natureza. Mas a boca, mais extrovertida e saliente, deu um chega-pra-lá nos olhos, e, se aproveitando das reminiscências juvenis, guardadas pela retina, desabafou.
- Estava desaparecida...! E, enquanto os olhos agora gozavam mais que a boca, porque se maravilhavam com a visão de sua princesinha, o órgão falante continuou: - Não tem aparecido! O que é que houve?
- Ando ocupada, não pude vir vê-lo. Foi a desculpa que ela encontrou. Mas só desculpa, pois na verdade ela não sabia dizer outra coisa, que foi coisa que a emoção lhe aprontou.
À noite, a Saudade, por uns mirrados minutos, veio cantar nos seus ouvidos esta quadrinha:

Quem inventou a partida
Não sabia o que era amor:
Quem parte, parte sem vida,
Quem fica morre de dor.

E, antes de conciliar o sono, o meu sofrido pai sentiu entrar como que por debaixo da fresta da porta um ventinho fresco e confortador, com um cheiro delicioso que remontava a sua mocidade. Fechou os olhos, vasculhou o pensamento, e por fim disse para consigo: “É o aracati...”
O prontuário médico termina este dia com as seguintes palavras: “Conciliando sono no período...”.

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