segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Homenagem póstuma de um filho (XV)

PALAVRAS FINAIS
Por: Jurandir Josino Cavalcante
No texto da vida, a morte é um ponto parágrafo ou um ponto final? Para alguns, cujo texto escrito durante a vida tenha sido de bons exemplos, de boas ações, perseguindo sempre o bem de seus irmãos, é de se imaginar que nesta hora estará assinalando mesmo e apenas um parágrafo, que deverá continuar numa outra vida, além túmulo, coroada com os prêmios adquiridos nesse primeiro momento.
Ponto final estarão assinalando os que escreveram páginas de ódio, de egoísmo, de maus ensinamentos, de destruição, enfim, do próprio irmão.
Num, a morte passa a página do livro da vida, no outro o fecha, e muitas vezes violentamente.
No primeiro, cujas palavras foram escritas com letras de ouro, com ausência de esdrúxulas, onde o estilo por vezes parece galopar, sem entrelinhas e sofismas, o autor está tão bem retratado nas suas páginas que ambos são uma só e única entidade.
No segundo o livro esteve tão mal guardado que a traça fez o seu estrago, a tal ponto que prejudicou até a compreensão do que foi produzido. As palavras, fortemente aplicadas no papel, doem na vista do leitor, ferem o seu intelecto, transmitem insegurança, insatisfação, rancor.
Diante do momento crucial, que o ser transmuta-se deste capítulo para ilustrar um outro, neste momento vêm-lhe à mente milhões de cenas, desenhadas desde a mais tenra idade, contornadas, coloridas com paciência beneditina; num fiat os seus olhos são testemunhas, mais uma vez, daqueles momentos bons, dos lances quase angélicos, escritos durante uma vida sempre inspirada, onde a poesia foi a constante.
Enfim, a dualidade: a morte é o ponto no qual se encontram o antes e o depois. Mas... o depois (?) Temos conhecimento só de ouvir falar. Agora, ela é o interregno, o hiato. Abundam descrições do estado físico do morto, no entanto são impressões de quem está vivo. Quem dará explicações do morrer estando morto?
Estas cogitações são de um vivo, que ainda está escrevendo o seu livro, e que espera fazer uma obra volumosa, pode ser uma epopéia, em prosa ou em verso, evidentemente para ser lida, degustada, indicar caminhos, apontar soluções, ajudar pessoas, tornar o mundo melhor. No ponto derradeiro, que vulgarmente chamamos de morte, não deverá constar um ponto final, mas sim uma vírgula, um ponto-e-vírgula, dois pontos ou um travessão, a indicar que ela terá continuidade, no lugar devidamente escolhido por Deus. E aí nesse outro lugar a assinatura será d’Ele, os pensamentos serão d’Ele, as palavras serão escritas por Ele. Serão meus apenas os louvores, para com o autor da vida e da morte.
Mas, quando penso que a minha inspiração teve origem no desaparecimento do meu querido pai, eu faço a devida mudança de rumo que a meditação deve percorrer, para melhor esboçar o perfil desse homem que foi o meu guia e mestre no viver e no morrer. A minha obra, portanto, deve ter como primícias os lances mais marcantes da vida e culminar com os últimos suspiros do varão que me botou no mundo e guiou os meus primeiros passos.
Bem, agora é voltar o olhar para as últimas cenas, dessa peça encenada com muito suor e choro, e não se ocupar mais da vida que, escrita com profusão de imagens, já bastou para o homem simples que foi o meu pai.
Procuraremos chegar à fronteira, quando se fecham os olhos deste lado e, concomitantemente, abrem-se do outro; vamos dar-lhe o último abraço e dizer-lhe adeus, antes de perdermos – pela impotência da vida – a capacidade de continuar vendo-o, admirando-o e amando-o com o olhar; deixá-lo, no gozo e superioridade da outra vida, usar das faculdades onividentes, de que imaginamos a alma é dotada. E, por isso mesmo, sentir-nos vigiados, como em criança o fomos tantas vezes, por esses olhos que por nós velarão lá do etéreo, como um outro anjo da nossa guarda.
Meu pai, estavas só... Não tiveste a mão amiga a colocar o travesseiro debaixo de tua cabeça, como fizeste com o teu pai João Batista, terna e carinhosamente. Perguntaste: “Está bom assim?” e ele, tranqüilamente: “Está que é por pouco tempo...”. Depois, a longa espera pelo final. E quando ele veio foi terrível, teve que se afastar para chorar a perda profunda. Mas foi um valente, ali, ao lado de seu grande santo, resistiu como um herói, porque era preciso fortalecer aquela alma que daqui a pouco estaria frente a frente com o Criador. Hoje, mais uma vez, essa força foi exigida, não mais de filho para pai, mas de pai para pai, quer dizer, de uma alma para consigo mesma. Onde os filhos? Os amigos? As pessoas que o adoravam? Ninguém perto, navegava sozinho no seu mar, com um vento brando e morno... Os anjos entoando os seus cânticos, podia já sentir o aroma celestial, e nenhuma alma para ajudá-lo a remar, a dar as últimas remadas nas águas turvas do fim da vida. Se bem que, fim mesmo não era, pois se tratava de um homem com lição de bem viver, bem repartir, que se ia para nascer num lugar-prêmio, para onde se vão os bons e amantes do Deus verdadeiro.
Meu pai, Deus te guarde; e, no silêncio de meu sentimento de perda, circundado por este vazio que deixaste, vou repetir, incansavelmente, que te amo! Até que nos encontremos face a face, e eu possa cantar esta e outras canções, olhando dentro de teus olhos paternais, tornados angelicais.
Pai nosso, o meu pai está no céu,
Venha a nós, trazer-nos suas notícias
Faça a sua vontade sem escarcéu
Que ele é bom e merece mil letícias.

O pão nosso, adquirido sem malícias
Nos deu sempre, acompanhado de mel.
E estando junto a nós desde as primícias,
Conduziu-nos, tirando-nos o fel.

Não nos deixou cair no descaminho
Deste mundo repleto de cilada,
Livrando-nos do fumo e do vinho;

Mas, sendo um pai que só queria o bem,
Fez sua prole crescer inclinada
Pra obedecer ao Pai do céu. Amém.

Aqui termino meu panegírico, ao homem simples que repetidas vezes me abençoou, me ajudou a crescer com seus conselhos, se dividindo como um pai, um amigo, um companheiro de todos os momentos. Disse tudo? Não, disse apenas o que foi transbordando do coração e que o intelecto era capaz de reproduzir no papel. Fiz uma biografia, com esforço, de filho que ainda chora pelo pai: não me foi possível ser historiador, a emoção me invadia a cada passo. Deixo aos irmãos as críticas, que poderão completar as lacunas ou corrigir os lapsos. “Se ficou boa e literariamente agradável, era o que eu queria. Se está fraca e medíocre, é o que fui capaz de fazer ”.

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