A MORTE DO MEU PAI
Por: Jurandir Josino Cavalcante
Recorro novamente ao prontuário, essa testemunha muda, tesoureira dos instantes mais dolorosos de meu pai. Olho-o com carinho, folheio as suas páginas cuidadosamente, passeando os olhos pelas letras dos médicos, hieroglíficas, misteriosas, apocalípticas, e detecto as últimas cenas da tragédia paterna.
“20.01.95: No quarto dia de UTI, continua quase no mesmo estado. Aceitou parcialmente a sua dieta, acesso venoso na subclava esquerda desde o segundo dia; em uso de sonda nasogástrica, para melhorar respiração; sonda vesical com pouca diurese; líquido diálico já meio limpo. Feito eletrocardiograma; continua monitorizado, em oxigênio contínuo; às 12:15 foi entubado, com uso do respirador artificial automático (Mark-7-Berd); secreção nasogástrica de cor marrom escuro, em quantidade razoável; administrada 10 ml de água pela sonda e aspirado logo em seguida para não obstruí-la. 18:00 h: encontra-se em estado grave, em coma, não respondendo aos estímulos dolorosos, hipotenso, com cianose periférica importante; sem diurese. 21:00 h: aspirada secreção em média quantidade, de cor marrom, finalizando sanguinolenta, bastante por via oral, do mesmo aspecto da cânula. Diante de seu estado cada vez mais grave, foi fechada a sonda nasogástrica”.
Nessa sexta-feira a coragem me saiu fugindo estrada afora, abandonando impiedosamente a minha emoção. O meu pai estava entubado, era tudo, não suportaria vê-lo em mais esse suplício. Os que entraram a visitá-lo, voltaram horrorizados, viram não só um homem que perdera a batalha da vida, mas um homem já quase sem vida, um trapo de homem, uma tênue chama de vida. Onde estava a alegria de meu pai? A sua vivacidade? O seu olhar sincero? A sua palavra amiga? O seu abraço de pai? Estavam ali escondidas à sombra de suas dores, e suas dores a fazerem motim contra esse grande comandante.
Chegara a noite e me vieram os pressentimentos: o meu pai deveria morrer no dia seguinte, sábado, esta noite, portanto, seria a grande agonia, os instantes cruciais, dos estertores... Perguntava-me: por que não ir ao hospital e fazer uma vigília nesses seus derradeiros momentos? Não fui, preferi dormir e aguardar o desfecho da história paterna no meu leito. Sabia que o dia seguinte seria de muita dor, muito sofrimento, em que era necessária muita energia, muita força de alma.
Antes de deitar-me, às 21:00 horas, telefona o doutor Everardo, médico desse hospital, informando o estado de saúde de meu pai. Disse-me: “Está com uremia, pressão de 4 X 6, seu estado é gravíssimo”, e acrescentou: “Considero o seu estado geral como estado de choque”. Travava corpo-a-corpo com a morte, mansa resistência, já que hauridas as forças, tinha-se como vencido. Mas era mesmo um herói prestes a receber a palma do martírio, que viria logo em seguida.
Noite escura, noite tenebrosa...
Dormi, sim, profundamente de sexta para sábado, não sonhei, mas, no momento que abri os olhos, o pensamento como que deu continuidade ao que já vinha martelando, e a palavra foi a mesma: Meu pai!
Nessa manhã de sábado, quente, ensolarada, o prontuário registrou os momentos finais de meu pai, o seu fim, predito por ele há dois dias:
“21.01.95: 06:00 h, aspirada grande quantidade de secreção oral, da cor de borra de café. Realizada higiene oral e íntima, feita glicemia (resultado 240 mg/dc)”. Aqui parece que os órgãos cansados de meu pai perdiam a consistência, se transformavam em lama, se derretiam. O seu esforço talvez de prolongar a vida, pela secura de bem servir a Deus e ao próximo, faziam-no implodir. Seria o caso de perguntar ao seu coração: Velho amante dos filhos, da mulher, dos irmãos, do mundo, de Deus, por que não resistis?
“Prescrição médica, a mesma, assistido pelo plantonista. Feito bicarbonato de sódio, 5 amp. para reanimá-lo, porém sem sucesso. Dieta zero, sonda nasogástrica em aspiração, acrescentado à medicação Revivan 50 ml + SG 200 ml, lento, além de outras medicações anteriores.” A tentativa de reanimá-lo não obtinha mais sucesso, pois já se sentia entregue ao Pai. Não mais se alimentava. Afinal, estava tudo corroído por dentro...
“Muito grave, largado, não mais respondendo aos estímulos verbais, cianosado, pressão arterial inaudível, pulso imperceptível, hipotérmico.” Ora, de flagelado da seca, nos anos de juventude, a flagelado da própria vida, quando a velhice já fazia peso no funcionamento dos órgãos. Não podia mais responder a qualquer estímulo, mesmo à voz de sua princezinha, estímulo maior de sua vida.
“Secreção nasogástrica borra de café, diálise peritonal com líquido sanguinolento. 08:15 h, apresentou parada cardiorrespiratória; feitas manobras de ressuscitação cardiopulmonar e medicação de urgência, no momento, com êxito; administrado Dopomina 45 ml/h; feito eletrocardiograma e respiração cardiorrespiratória”. Borra de café, borra de café... Que doloroso para nós os filhos, que cena terrível, que dor! O meu pai se transformava em borra de café! Mas... e o coração? Estava como um velho relógio, não queria mais marcar as horas, queria deixar-se ficar parado sob a brisa da manhã.
“09:00 h, apresentou bradicardia intensa; feita novamente medicação de urgência, sem êxito. 09:30 h, constatou-se óbito, feito pedido de necropsia, familiares cientes, corpo encaminhado à patologia”. Estava em marcha lenta o velho coração... Era a grande sinfonia que terminava agora com uma simples nota claudicante, e que silenciava pela própria incapacidade de se harmonizar com o restante das notas. O meu pai parava de respirar, parava de falar, parava de ver, parava de pensar, parava de viver... mas não parava de amar, pois é esse o momento em que o ser se encontra capaz de amar verdadeira e profundamente a todos, porque tem não mais a alma a comandar o corpo, mas a alma a ditar todos os procedimentos em vista do amor. Agora, diante do meu velho pai morto, confirmava aquelas suas palavras, de dois dias atrás, respondendo-o: É meu pai, chegou o fim!
Fiquei triste, sim, pois fiquei sem o meu pai, mas... e o Céu, não terá ficado mais alegre com recebê-lo?
Meu pai era tudo o que possuía,
Pois ensinou-me a arte do sorrir,
E nas horas de dor, do mal ferir
Depositou a mão de Deus na minha!
Com teu sorriso, pai, foste meu guia.
Com teu conselho o meu bem conduzir.
Foste a luz pelo caminho a esparzir
As doces notas da Ave Maria!
Hoje rezo, e rezo a toda a hora,
Pelo menos para sonhar contigo...
Porque a morte, que leva tudo embora,
Numa triste manhã, e sorrateira,
Usando da inclemência costumeira
Levou-te, pai, meu único amigo!
Nenhum comentário:
Postar um comentário