sábado, 6 de setembro de 2008

Unção dos enfermos

Homenagem póstuma de um filho (XIII)

Por: Jurandir Josino Cavalcante

Unção dos Enfermos
Cedinho, quando o fusco da antemanhã ainda lançava as suas sombras sobre as mangueiras de D. Dica, papai ouviu um assobio, longínquo, ecoante, simpático, familiar: “Seu Batiiistaa!” Olhou para a janela do oitão, com o pensamento, pois o sono não o deixava nem mesmo abrir os olhos, e disse baixinho, quase sussurrante, para mamãe que ressonava:
- É o padre Rolim.
Ela, sem se mexer e abrindo os olhos, espantada:
- Esta hora?
Levantou-se, foi fazer o café. Daí a minutos voltou:
- Francisco, ô Francisco! Franciiiisco...
Ele entreabriu os olhos, tentou se espreguiçar... alguma coisa o prendia na cama. O quarto ainda escuro, brumoso, um cheiro esquisito... Quis perguntar pela Raimunda, respondendo ao seu chamado, mas não o fez: junto ao seu leito já se encontrava a enfermeira com um prato de mingau.
- Vamos, Seu Batista?
- Hã!!
- Sabe que horas são? 8:45h, Seu Batista, dormiu que só um frade!
- Atropelou algumas palavras, que a respiração ofegante liberou, alcançando articular ainda:
- A Raimunda e os meninos chegaram...?
- Não, Seu Batista, é de manhã; eles só vêm a tarde.
Aproximou-se mais e logo introduziu a primeira colher de mingau na sua boca, verificando simultaneamente as horas, com fisionomia preocupada de quem não tinha sido substituída no plantão da noite. Mas... nós que estamos tão distantes de ambos, pela ação física do tempo, aproximemos-nos espiritualmente dessa cena, e, se nos deixarem, enfiemos o olho, a língua, ou o dedo, experimentemos esse mingau de maisena. Hum! É um tanto desgostoso, sem açúcar, de uma cor indefinida, nem branco nem amarelo. Ele parece engolir com dificuldade, como quem quer pedir um pouco de água... A enfermeira não, que veste uma roupa velha da cor do mingau, não está tão desanimada assim, tem fome e comeria até isso. Ele anda sem estômago pra digerir, razão por que do seu semblante está saindo este ar de irônica rejeição a tudo, e parece dizer com enfezamento: “Droga! Droga! Tratamento errado, por que toda essa drogaria em volta de mim, e essa parafernália, e esse montão de gente me interrogando?”. Perdoe-me, irmão, você não gosta de citações eruditas, mas olha do que me lembrei agora, daquele verso da Eneida: “Longe de calmo mostrar-se, o remédio mais áspero o deixa” , que me dispenso de citar em latim. Mas está tão impotente, atada a língua, os braços, as pernas, a vontade, a mente, os nervos, que mesmo seu gemido parece sair espremido, contrafeito, furtivo. Queremos ajudá-lo, e estamos também presos a uma impossibilidade, só vencida pelo sobrenatural do qual somos só conteúdo. Não obstante, esquadrinhemos no seu Prontuário os itens mais importantes:


1. Dieta hipossódica branda com restrição;
2. Hidróxido de alumínio, durante as refeições;
3. Capoten;
4. O2 úmido, contínuo;
5. Cabeceira elevada a 45;
6. Cimetidina à noite;
7. Balanço hídrico;
8. Monitorização + ECG diário;
9. Fisioterapia respiratória;
10. Diálise peritoneal;
11. Sinais vitais 4/4h.

Saudades da Leda, hem, papai? Não vamos encompridar este assunto, que vão acontecer coisas mais importantes pela frente.
O prontuário não faz referência à refeição oral antes das 15:15h, quando “Aceitou 150 ml de leite”, mas traz duas anotações aparentemente graves: “18:00 Não foi administrada a dieta neste horário. O mesmo apresentou bastante vômitos”, e de 00:50h: “Consciente, orientado, gemente. Apresentando tosse produtiva, porém sem expectorar. Afebril, taquipnéico... Em diálise peritoneal, a mesma sem drenar satisfatoriamente; retirado cateter e recolocado novo cateter. De início líquido drenando bem, mas logo em seguida a drenagem cessou e o líquido apresentou-se c/ grumos, obstruindo o fluxo; trocado bolsa coletora e equipamento da diálise, porém não houve resultado; plantonista ciente”.
Quando entrei, nesta tarde, o meu pai já tomara o leite, e nem aparentava tê-lo feito, ou talvez sim, se considerarmos a branquidão de seu rosto. Fiz como das vezes anteriores, agarrei a sua perna e sacudi-a devagar. Ele abriu os olhos, que rebrilharam naquele ambiente cinza, aqueles olhos que me ajudaram a trocar os primeiros olhares desta vida, que me guiaram pelas sendas do bem. As palavras que me disse ficaram aqui dentro gravadas e tão fundamente impressas que parece se repetirem, se repetirem, me remetendo para a infância ou para a velhice, num jogo de ser o filho um outro pai:
- Meu filho, chegou o fim!
Perplexo, tive vontade de abraçá-lo, de chorá-lo ali mesmo, de beijá-lo muitas vezes... Chorei-o, sim, senão lá fora, desconsoladamente. Dentre os que se achegaram para aliviar minha dor estava o meu irmão mais velho: lembrou-me desse instante sublime da extrema-unção, que buscasse um padre, fizesse caridade com nosso pai. Não pensei, agi, como um ser que às vezes prescinde do órgão pensante por ser mais prático dar aos outros órgãos o livre arbítrio que eles precisam para atingir o fim que desejamos. Rememore-se à vontade, pois este socorro não lhe faltou, ou porque as pernas souberam cumprir o seu papel, ou porque a fala foi competente para convencer o padre, ou ainda porque este teve boa disposição para atender ao chamado. O certo é que, no declinar do sol, quando todas as frestas apagavam as suas réstias, o meu pai estava recebendo a visita do padre Luiz Alberto.
Difícil não fora trazê-lo, era disposto, principalmente para o mister, pois confessava seguida e pacientemente pelo longo das tardes a quem lhe aparecia carregado de pecados. Quando me introduzi na sacristia estava lá ele, sentado ao birô, purificando uma alma. Logo me chamou. Feito o pedido, desceu ao carro a pegar a maleta de seus petrechos. Abalamo-nos na direção do hospital. No caminho, eu repetia continuamente aquelas palavras do meu pai: “Meu filho, chegou o fim!”. Dentro em mim havia um buraco, expulso por completo o conteúdo do meu corpo, aquelas palavras brincavam de voar no vazio do meu ser, batendo nas paredes laterais e internas da minha cabeça: “Meu filho, chegou o fim!”.
- Padre, por que o homem vive tão intensamente oitenta e três anos, ignorante de seu fim, mas conhece-o quando está bem próximo?
- Meu filho é mistério, que somente a Deus é dado conhecer. Mas conjeturas são bem-vindas.
- Como assim, padre?
-Assim, meu filho: podemos imaginar razões naturais ou razões sobrenaturais. Dentre as primeiras, temos um homem no cimo da montanha dos oitenta e três anos, no declínio das forças, sem o vigor de outrora, tendo aos ombros o peso da ancianidade, a sofrer o terremoto de uma terrível doença. Estremece, tenta se firmar, equilibra-se, cai; prostra-se, tenta ainda se soerguer... e na luta que trava com esse terrível inimigo vai perdendo as forças, vai sentindo esvair-se a própria vida, até que, impotente de todas as potências, reconhece-se um trapo, um nada, um morto-vivo. A vida escapou-lhe talvez pelos poros e teima em estar presente na psique, como uma chama breve que vai desaparecendo ao sopro da brisa. Os limites do homem estão sendo postos à prova, e tendo ele atingido o seu, reconhece-se no fim, sente que esta velha máquina a qualquer momento pára, e, enfim, desiste de resistir, e consciente começa a morrer lentamente, assistindo ele próprio à destruição do que ainda lhe resta. Como o cisne, conhecendo a proximidade da morte, canta seu último canto: “Meu filho, chegou o fim”.
- Esta seria a explicação natural...
- A natural. Entremos na sobrenatural.
Enquanto isto eu acelerava mais o carro, pois uma má impressão me dava aqui dentro de que não chegaríamos a tempo de levar ao meu pai o último socorro, o conforto e esperança para seu espírito. Olhei para o meu passageiro, emudecido de repente; a cabeça um pouco pendida e gota de suor a escorrer se desviando do pomo em direção ao tórax.
- Problemas, padre?
- Não... Sim, minha mãezinha, está também velhinha. Daqui a pouco terei que buscar suas razões, inquirir dos valores naturais e dos sobrenaturais, menos para aliviar-me na perda dela do que para responder ao meu subconsciente às indagações sobre seus momentos finais; e anseio por respostas que satisfaçam aos dois valores. Ao dizer isto os seus olhos brilharam; e se a lágrima veio ao rosto, não a pude ver, pois fui obrigado a dar mais atenção ao trânsito, sob pena de bater noutro carro.
- Padre, a razão sobrenatural!
- Ah! Temos pouco tempo, mas vejamos. O seu pai recebeu uma graça de conversão, que é como um aceno de Deus: “Você, meu filho pródigo, tem o seguinte prazo para voltar para casa, e fazer as pazes com seu velho pai”. Se voltar, será bem recebido. Deus o espera, como aquele outro pai do Antigo Testamento. O filho, ainda entre os mortais, pode escolher de passar o último dia genuflexo, diante da porta que a qualquer momento será aberta para ele abraçar, ainda de joelhos, os pés daquele que lhe dera a vida, e que agora a restitui com promessa de eternidade. Reconciliação é a chave que lhe abre porta... O velho sacerdote, empolgado com o tema dos Novíssimos, parecia fazer sermão aos fiéis na Semana Santa. Discorreu longamente sobre “reconciliação”, “salvação eterna”, “desígnios divinos”. “Não nos é dado conhecer, por nossas potências, o fim do desterro ao qual o pecado nos submeteu, mas muitos são – como seu velho pai – que demonstram sabê-lo a poucas horas do túmulo”; citou Bernardes: “Assim como não soube o dia de minha entrada nele (mundo), tão pouco sei o de minha saída”, e, ao cabo, notando a minha apreensão e a proximidade já do hospital, concluiu com Jó: “O homem nascido da mulher vive pouco tempo e é cheio de muitas misérias; é como uma flor que germina e logo fenece”.
Chegamos, apeamos e fomos ver o nosso homem.
Qualquer descrição que fizesse da natureza, do crepúsculo, das sombras que rondavam o hospital, do bafejo da brisa, do semblante das pessoas, seria mera literatura. Nada via senão o meu pai; nada me atraía a atenção, nada mais ocupava o meu pensamento, nada mais tinha existência senão o meu pai, e era preciso prolongar essa existência, era preciso garantir-lhe a certeza da outra existência; a pregação do sacerdote se repetia lá no âmago de meu ser, como o eco de um sino que deixara de bater.
Ao pé do leito, quando apalpei o seu pé, seco e amarelento, repetindo o gesto das outras vezes, tive um sobressalto: estava frio, frio como o ambiente que o abrigava, como as pessoas que o assistiam. Abriu os olhos, e em tom de surpresa:
- Meu filho!
- Papai – disse-lhe com a emoção meio embargando a voz – trouxe-lhe um padre...
- Oh! meu filho, muito obrigado, Deus lhe pague!
O sacerdote chegara para ajudá-lo a se preparar, a morte era já no caminho: a alma que vestisse roupa nova, expulsasse os maus elementos e começasse a rezar pelas suas futuras companheiras. Abriu a maleta, tirou o aspersório e deu de aspergir tudo, começando pelo meu velho moribundo; nesse momento o meu pai abriu a boca e soltou um urro, de sonido feio, depois quietou, plácido, lúcido e desejoso de acompanhar as orações. Rezamos o confiteor, que é ato penitencial, e foi-lhe dada a absolvição dos pecados: “Deus Pai de Misericórdia que pela ressurreição de Seu Filho reconciliou o mundo consigo e enviou o Espírito Santo para remissão dos pecados, te conceda, pelo ministério da Igreja, o perdão e a paz. E eu te absolvo dos teus pecados, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém”. Deu-lhe hóstia, que recebeu naturalmente, quer dizer, sem obstáculos na deglutição, e radiante.
O padre Luiz era singelo no ofício, a modo de quem pouco pensa no que faz, sem lhe botar emoção, mas fazia com graça. Pegou ainda do livrinho para os dois momentos finais: a Unção dos Enfermos, cuja fórmula inicia com estas palavras: “Por esta Santa Unção e pela Sua infinita misericórdia...” e a Bênção Papal: “Eu, pela faculdade que me foi dada pela Sé Apostólica, te concedo indulgência plenária e perdão de todos os teus pecados...”. Com os acréscimos de um Pai Nosso, uma Ave-Maria e um Glória ao Pai. No instante em que iniciamos a oração do Pai Nosso, o meu pai – querendo seguir o costume – fez menção de elevar as mãos, mas foi impedido pelos cordões que o amarravam, e o mesmo quando quis se benzer.
Vem a propósito definir o que foi a existência de meu pai até aqui, e o que vem a ser o que acabamos de contar: Preâmbulo, apenas um preâmbulo. Sim, porque “a morte é premissa de vida e de fruto abundante” , pois a verdadeira vida começa após a morte, duradoura, eterna. Nesta vivemos a contar o tempo, na outra não há tempo cronológico, como dizia Santa Tereza: “Espantava-nos muito, o dizer-se, no que líamos, que a pena e a glória eram para sempre. Acontecia-nos estar grandes bocados tratando disto e gostávamos de dizer muitas vezes: para sempre, sempre, sempre ”.
Para sempre, sim, e para sempre é a separação física, enquanto estivermos nesta vida, “gastando os últimos cartuchos”, mas será grande a alegria se com ele, meu pai, nos reunirmos lá onde Deus tem sua morada, morada celeste.
Retornei com o sacerdote para a sua igreja. Nada mais falamos. Talvez algum comentário sobre o tempo... Despedimo-nos, agradeci muito, osculei sua mão. Fui para casa dividido o pensamento entre o padre e o pai: o padre, um pai; o pai, um padre.
Recorro novamente ao prontuário, essa testemunha muda, tesoureira dos instantes mais dolorosos de meu pai. Olho-o com carinho, folheio as suas páginas cuidadosamente, passeando os olhos pelas letras dos médicos, hieroglíficas, misteriosas, apocalípticas, e detecto mais algumas cenas da tragédia paterna.

Sobre a unção dos enfermos
Sobre a unção dos enfermos, reza o Catecismo da Igreja Católica: "A compaixão de Jesus pelos doentes e as numerosas curas de enfermos são um claro sinal de que, com Ele, chegou o Reino de Deus e a vitória sobre o pecado, o sofrimento e a morte. Com a sua paixão e morte, Ele dá um novo sentido ao sofrimento, o qual, se unido ao seu, pode ser meio de purificação e de salvação para nós e para os outros." (n. 314) e "A Igreja, tendo recebido do Senhor a ordem de curar os enfermos, procura pô-la em prática com os cuidados para com os doentes, acompanhados da oração de intercessão. Ela possui sobretudo um sacramento específico em favor dos enfermos, instituído pelo próprio Cristo e atestado por São Tiago: «Quem está doente, chame a si os presbíteros da Igreja e rezem por ele, depois de o ter ungido com óleo no nome do Senhor» (Tg 5,14-15)." (n. 315).

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