terça-feira, 11 de novembro de 2008

A Bondade sertaneja (VIII)

Por: Juraci Josino Cavalcante
Que tipo de Bondade praticou o Sr. Batista?
Visto anteriormente o que seja a Bondade, é fácil agora verificar até que ponto o Sr. Batista a praticou, em que grau ele estava quando fez alguma ação ou teve tal ou qual modo de vida. Basta ler o relato de sua vida, suas virtudes e auscultar, embora de longe, seu coração.
Parece-nos que ele tinha uma bondade natural bem marcante, muitas vezes aprimorada pelas graças de Deus. Esta bondade ele a exerceu durante toda sua vida e foi a nota predominante de seu procedimento. Não chegou, no entanto, a atingir graus heróicos. Mas, por pouco que tenha crescido nela, serve-nos de exemplo, de padrão de comportamento, a fim de que nós, seus sucessores ainda vivos, possamos um dia atingir graus cada vez maiores de perfeição.
Seu espírito, seu modo de ser, parecia-se muito com seu pai que “muito humilde, falava pouco e não gostava de discutir”, segundo ele mesmo relata. O Sr. Batista tinha também uma grande admiração por seus pais, afirmando que os dois viviam numa união “perfeita”, pois nunca ouvira discutirem: sua mãe cuidava dos filhos e da casa, ensinava as crianças a rezar, etc, enquanto seu pai cuidava de trabalhar para sustentar a família.
Da mesma forma viveu ele com sua esposa, D. Raimunda. Conta que, já no início do casamento, em 1941, teve que largar toda uma plantação feita numa vazante para ir ver sua esposa que, se encontrando adoentada na casa de seus pais, não podia voltar para onde estava o esposo. Só lhe restou colher o que pôde e o resto deixar para a água cobrir. Quer dizer, o importante era ver como se encontrava sua esposa e lhe dar assistência necessária, a vazante que ficasse e se perdesse pois Deus lhe daria tantas fosse necessárias para continuar trabalhando. De fato, logo as chuvas voltaram e ele teve condições de realizar outras plantações, desta feita junto com sua esposa e filhos.

A busca do conhecimento
“Quem conhece mais ama, e quem mais ama mais recebe” (Santa Catarina de Sena).

Para muitos daqueles que nasceram nos sertões pobres de nosso Nordeste, basta-lhes a vida pequena, miúda e sem progressos em que jazem. Para que se aperfeiçoar em alguma coisa? Para que estudar e ter algum conhecimento? Basta ser o que se era desde o nascimento: pobre, analfabeto, a serviço dos outros e sem maior desenvolvimento pessoal. Esta mentalidade parece ser um pouco contrária à do jovem rico citado no Evangelho, mas não, ela revela uma acomodação com a vida que se leva e sem desejar progressos, e, desta forma, é a mesma mentalidade. Para o Sr. Batista, não lhe satisfazia esta maneira de ver a vida. Era necessário progredir, procurar algo de melhor, crescer em tudo para assim conseguir servir melhor e se tornar mais perfeito. Nascido pobre, procurava uma forma de trabalho que minorasse sua situação; tentando melhorar esta situação, um dos caminhos que buscou logo de imediato foi o estudo.
Sim, o estudo. Com dificuldade, somente aos treze anos de idade, após a morte de sua mãe, começou a ter suas primeiras lições. Por sua conta procurou um professor, chamado Zeca Laurindo, compadre de seu pai, tomando dele as primeiras aulas de ler, escrever e contar. Como seu pai não podia e nem tinha muito interesse nos estudos dos filhos, procurou o Sr. Batista recursos com que pagar as aulas, que eram particulares. Empreitou com um vizinho encoivarar um roçado por sete mil réis, cinco dos quais para pagar suas aulas.
No entanto, durou pouco suas pretensões de estudo. Como não conseguira mais dinheiro, teve que deixar as aulas um mês depois, tendo neste pouco tempo aprendido a ler, escrever e um as quatro operações matemáticas. Continuou então a estudar com seu pai, que sabia muito pouco, mas que não lhe dava sossego pedindo para ensinar.
Persistente, conseguiu no ano seguinte mais um mês de aula com o mesmo professor. Desta vez sua intelectualidade avançou, leu livros até do quarto ano primário e aprendeu além das quatro operações também problemas de juros, pesos e medidas e regra de três simples. Tinha algumas noções de história e geografia, embora continuasse atrasado em português. Sua persistência pelos estudos fez com que conseguisse no outro ano mais alguns dias de aula com uma professora em Mossoró.
Estes estudos básicos foram suficientes para tentar ampliar sua cultura, seu conhecimento. Era preciso ler, mas ler o quê? Jornal não aparecia pelo sertão, e os livros eram muito raros e difíceis. Mas o que enxameava mesmo nas feiras, a literatura vasta e prolífera era dos livretos de cordel. Estes os havia em grande quantidade, e como o Sr. Batista gostava deles! Esta poesia simples, cabocla, primária e tida como tacanha, era a riqueza literária do sertanejo: nela ele encontrava ensinamentos diversos, conhecimentos variados, desde a cultura clássica até ao conhecimento de nossa história e dos personagens políticos do País.
Lendo livros de cordel, o Sr. Batista conseguiu intelectualizar-se da melhor forma possível e assim ampliar seus horizontes, saber de algo distante de onde morava, nomes das capitais, situações dos povos dos outros lugares, etc. E lia com tanto gosto aqueles livretos que, já velho, recordava para seus filhos, netos e bisnetos, aquelas poesias que lhe enchiam de satisfação em seus tempos de mocidade. Sua memória nunca lhe traía e conseguiu decorar grande parte das historietas e das poesias de seu tempo. Lembrava com saudades das histórias de um personagem chamado “Cancão de Fogo”(*) , celebrizado pela literatura de cordel.
Um exemplo que bem mostra a riqueza intelectual dos fazedores de versos do sertão é uma poesia que o Sr. Batista sempre repetia quando maduro, de autor desconhecido, que aprendera em sua juventude:
Eu vi um sagüi de espora
Macaco de realejo
Guariba tocar solfejo
Eu vi nos braços da Aurora:
Eu vi uma caipora
Despenseira de um navio
Sapo cantar desafio
Morcego vender fazenda
Catita fazendo renda
O sol tremendo com frio!

O mote é: Eu vi nos braços da Aurora o sol tremendo com frio! Tudo faz crer que o autor da poesia se baseou em nada menos do que no famoso Bocage, que tem uma poesia com o mesmo mote e reza assim:

Se isto vai de foz em fora,
Também com luz diamantina
Vir raiando a matutina
Eu vi nos braços da Aurora:
Só me resta ver agora
O caranguejo de um rio,
Ver os efeitos do cio,
Cantar modas um macaco,
A lua tomar tabaco,
O sol tremendo com frio!

O Sr. Batista, como bom sertanejo, gostava muito de ditados, especialmente dos ditados nordestinos. A imaginação nordestina é muito rica em sentenças, geralmente bem apropriada para cada caso. Eis alguns exemplos: “a gente nasce nu e não se enterra de chapéu”, “boi sonso é que arromba curral”, brincadeira de homem, cheira a defunto”, “nem o veado perde a vida, nem a onça morre de fome”, “pé de galinha não mata pinto”, etc. Copiou ele certa vez todos aqueles que sempre repetia e que sabia de cor:
Quem trabalha Deus ajuda
Farinha pouca, meu pirão primeiro
Quem não tem bons dentes não quebra nozes
Melhor só que mal acompanhado
Quem se vexa, come cru
Quem espera sempre alcança
Quem muito escolhe no pior se apega
Quem quebra galho é macaco gordo
Se faz de santo para melhor passar
Quem economiza tem
Quem guarda tostão junta milhão
Quem guarda com fome o gato come
Quem quiser ser grande nasça viçoso
Quem é bom já nasce feito
Quem tem fé não morre pagão
O galo canta onde aí janta
Quem olha a casa do vizinho se esquece da sua
Quem novo não morre de velho não escapa
Quem não pode com o pote não pega na rodilha
Não pede esmola porque não tem um saco...
Quem corre cansa, quem anda alcança
Quem muito quer muito perde
Quem planta vento colhe tempestade
Quem tem rabo de palha não brinca com fogo
Dois bicudos não se beijam
Quem fala a verdade merece ser perdoado
Quem não tem padrinho morre pagão
Quem se faz de mel as abelhas vêm e comem
Quem dar o que tem a pedir vem
Entre espinhos nascem flores
Cobra que não anda não engole sapo

Nas brincadeiras, o Sr. Batista era mestre. Mas eram sempre brincadeiras de bom espírito e sem maldades. Parodiava estes ditados, em tom de brincadeira, dizendo:
Os últimos serão... os reprovados
Quem ri por último é... retardado
Quem com ferro fere... ganha a briga
Quem dá aos pobres, empresta... adeus
Depois da tempestade... vem o prejuízo
Em terra de cego, quem tem um olho... é caolho

Com sua aposentadoria, o Sr. Batista dispôs de mais tempo para compor poesias, quase todas elas inseridas nesta obra. Quando o “muro da vergonha” em Berlim caiu, no ano de 1989, mandou ele a seguinte estrofe para um filho:
Conforme alguns analistas,
Que fazem estudo profundo,
Desmorona em todo mundo
O regime comunista:
E como já estava previsto
Na história mundial,
E como doutrina do Mal
Que nenhum cristão queria,
E como já tudo previa
Está chegando ao final.

Iniciava-se o ano de 1995, poucos dias faltavam para seu falecimento. Em seu leito de dor, recebia em casa os familiares distantes que o visitavam. Dia 03 de janeiro, ele chama sua neta, Carla, e dita para ela os seguintes versos que havia escrito numa folha de um caderno em sua homenagem já há algum tempo:

Minha netinha formosa
Ventura dos dias meus
És linda como uma rosa
Do belo jardim dos céus

O brilho do teu olhar
Tem tanto, tanto carinho
E o teu doce falar
É o canto do passarinho

Este riso que me prende
Tem meiguice, tem candor
Ai! Como teu riso acende
Na face belo rubor

Como o teu riso alerta
Um calor no peito meu
Como minh’alma desperta
Do corpo que já morreu

Como é bom ouvir segredos
Te afagando como desvelo
Deixar correr os meus dedos
No ouro dos teus cabelos

Tu és um anjo, querida
Um anjo banhado em luz
Que brilha na minha vida
E me suaviza a cruz

Quando fechar os meus olhos
Pra nunca mais ver os teus
Me guie por entre abrolhos
Até pertinho de Deus

Junto ao trono do Senhor
Te lembrarei com saudade
E rezarei com amor
Por tua felicidade!

Um de seus filhos acredita que esta poesia não é de autoria do Sr. Batista, tal o grau de perfeição que há nela. Não discordamos que ele possa tê-la lido alhures e decorado, mas o fato é que com sua letra a copiou em seu caderno e assim a ofereceu à sua neta. Poucos dias antes (12.11.94) mandara a seguinte poesia para um filho em homenagem a um neto prestas a nascer: Esta, indiscutivelmente, de sua autoria:

“Historinha de Kaio Lincoln quando nasceu”
Longos meses eu passei
Num apartamento sozinho
Não chorei, nem falei
Num cantinho, quetinho

Tudo era silêncio
Como se pode imaginar
Não tinha nenhuma convivência
Naquela sala de estar

Em tudo Deus impõe
Durante o dia a dia
No seio me guardava mamãe
Mas seu rosto eu não conhecia

Eu era bem cuidado
Com amor e com carinho
Nada me faltava
Naquele bendito ninho

Afinal chegou a hora
De uma feliz noitjnha
De conhecer agora
O papai e a mãezinha
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(*) Canção de Fogo era um menino conhecido por suas travessuras e esperteza. Um dia, ao sair em busca de dinheiro para comprar comida à sua mãe, consegue-o depois de enganar um velho que se dirige a um quartel pensando ser um hotel. A mãe recebe a comida, mas pragueja o caráter do filho, que parte. Longe, ele é perseguido pelo tio que se compactua com o velho enganado, para que este o traga preso com precatória assinada pelo delegado. A perseguição é vã diante da astúcia de Canção. As travessuras então se multiplicam quando ele conhece e acolhe o menino Alfredo que, triste e desamparado, passa a acompanhá-lo e auxiliá-lo nas trapaças. Esquivando-se constantemente da polícia, os dois simulam deficiências física e visual e, com a rica bengala de um delegado e, um atestado e uma coroa cedidos por um pastor também enganado, passam a ganhar dinheiro às custas de boas esmolas. Durante sua trajetória, Cancão nunca deixa de enviar dinheiro à mãe.

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