segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

A Bondade sertaneja (XI)




O sertanejo, antes de tudo um forte





Bate a enxada no chão
limpa o pé de algodão
Pois pra vencer a batalha
precisa ser forte, robusto, valente e nascer no sertão;
Tem que suar muito pra ganhar o pão,
Que a coisa lá não é brinquedo não.

Mas quando chega o tempo rico da colheita,
trabalhador vendo a fortuna se deleita:
Chama a família e sai
Pelo roçado vai
Cantando alegre, ai, ai, ai, ai, ai.


(música de Zé Dantas e Luiz Gonzaga)

A frase que Euclides da Cunha tornou famosa em seu livro “Os Sertões” (O sertanejo é antes de tudo um forte) é o resultado de uma profunda análise psicológica do nordestino, principalmente do nordestino sertanejo, quer dizer, daquele que arriscou tudo se embrenhando pelas caatingas, em ermos longínquos e inóspitos, para lá construir o seu mundo, sua vida, sua família e fazer de si mesmo este modelo vivo de fortaleza e austeridade. Formado assim na luta, nas dificuldades ingentes das intempéries e do sofrimento humano, o sertanejo nordestino tem uma têmpera forte, um caráter firme e decidido, mas ao tempo com uma alma dócil, cheia de bondade, amorosa, cálida para com os amigos e aguerrida para com os adversários de si e dos seus. Um exemplo bem marcante disto foi tudo o que o Sr. Batista teve que sofrer em seu sertão, como ele mesmo conta em suas reminiscências aqui transcritas, alimentado, sustentado, por sua religiosidade franca, sincera e ainda que pouco instruída.
Sua primeira viagem em busca de melhorar de vida foi feita em 1927, conforme relata, tendo intenção de viajar 22 léguas (l32 km!) a pé, de Portalegre a Mossoró, levando consigo apenas uma rede de dormir, um lençol e uma muda de roupa. Contava cerca de 16 anos de idade e nunca havia saído de casa, não sabia nem pra que lado ficava Mossoró. Após percorrer os primeiros três quilômetros para a estrada principal encontra-se com uns desconhecidos, comboieiros que se dirigiam para seu mesmo destino. Pediu para acompanhá-los. Dormiu no meio do caminho, talvez ao relento, e no dia seguinte amanheceu com febre. Ele mesmo relata: “...mas assim mesmo saí acompanhando aqueles estranhos companheiros com os seus burros de cargas, numa estrada poeirenta e sob um sol escaldante. Às doze horas, quando paramos para o almoço, a febre tinha aumentado, sentia muito frio e não podia mais caminhar. Então, dentre aqueles desconhecidos, surgiu uma alma generosa que, compadecendo-se de mim, cedeu-me a sua montaria e seguiu o resto da viagem a pé. Lá chegando à casa do meu tio Vicente, notamos que a minha doença era catapora e em pouco tempo estava bom”.
Outra viagem longa foi feita em 1930, três anos depois, ele e mais três irmãos, esta em direção ao Ceará, à cidade de Jaguaribe. Novos problemas na viagem, pois como seguiam à pé e ele estava com um pé doente não conseguia andar. Viram alguns animais bebendo água, amarraram um deles e puseram o Sr. Batista em cima do animal. À noite encontraram uma casa para pousada e soltaram o animal, pois o seu pé já estava melhor para continuar sua jornada.
Detiveram-se numa cidade chamada Flores, onde encontraram trabalho na construção de uma rodovia. Os homens que em tempos de seca faziam tais trabalhos eram chamados no sertão de “cassacos”, termo que Aurélio Buarque de Holanda captou e inseriu em seu dicionário. Novos problemas. Surgiu uma epidemia de paratifo, e, segundo ele, morria gente diariamente vitimada pela doença. Calor escaldante, poeira, trabalho estafante e duro, junto a uma alimentação precária (comiam quase só um tipo de farinha de péssima qualidade), enfraqueciam os cassacos e os faziam vulneráveis às bactérias e vírus. Seus três irmãos foram acometidos da moléstia e logo voltaram para casa. Ele, teimoso, ficou. Mas logo adoeceu também e teve que voltar para casa. A febre, porém, não o deixou chegar à sua casa. Teve que se demorar na casa de um seu tio que morava a meio do caminho, até que seu pai o viesse buscar a cavalo.
A tônica dos relatos do Sr. Batista era a seca que rondava constantemente as vidas rurais dele e dos seus familiares. No ano de 31 nova estiagem, novas dificuldades. Foi aí que juntou-se com um amigo ou parente, Chico Barros (há Barros na família de sua mãe) e foram tratar do gado de um fazendeiro. Estava próximo dos 20 anos de idade e já levara uma vida duríssima pelos sertões. Tinham que se meter nos matos para cortar mandacaru e macambira para dar aos animais. Quando voltavam, cansados, famintos e cheios de espinhos na carne, tinham como comida apenas um pirão de farinha com carne de carneiro. Terminado o almoço, tomava-se um cafezinho e voltava-se ao trabalho, sem direito a uma sesta sequer. E a operação se repetia: embrenhar-se nos matos, cortar mandacaru e macambira, colocar em cima dos burros e trazer até os currais para dar ao gado. Antes de tudo, teriam que reunir os animais, soltos pela caatinga. À noite, após uma ceia também fraca, dormiam ao relento. E assim era todos os dias naqueles ermos.
Durou pouco mais de um mês a sua empreitada com o fazendeiro, pois se desentenderam com ele e foram embora, deixando-o só. Numa certa noite que o dono da fazenda os tratou mal, naquele mesmo momento resolveram pegar seus pertences e largar o “emprego”, fazendo aquela jornada de duas léguas a pé, numa estrada poeirenta e num areal que ia até o tornozelo.
Quando não fazia estas viagens e tais aventuras o Sr. Batista levava a sua vida com seu pai, ajudando-o no roçado, com a enxada, capinando, cavando, plantando, colhendo, etc. Debaixo de sol escaldante. Foi assim que lhe foi insculpida em seu espírito aquela paciência, que era paradigma de seu avô e de seu pai, capaz de “cozinhar pedra”, como diria o próprio sertanejo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário