a) a) A Contra-Reforma no Brasil ou a
Contra-Revolução possível
O espírito católico de Mem de Sá foi,
assim, aperfeiçoado e requintado com os exercícios espirituais inacianos. Daí
para frente os cronistas registram uma contínua procura de perfeição e prática
da bondade. Como se comportava o novo Governador em sua vida de piedade? O Padre Simão de Vasconcelos nos diz:
“Rezava
o ofício divino todos os dias; infalivelmente vinha ouvir missa ante manhã ao
nosso colégio; confessava, e comungava todos os sábados, por dias mais
desocupados para ele que os domingos. Era contínuo em assistir às pregações, e
dava aos pregadores pias advertências. Era brando, e benigno para com todos, e
tão inclinado à virtude que a não ser a obrigação de seu cargo, escolhera de
boa vontade (como ele dizia) ser um dos particulares obreiros e missionários da
companhia; mas se não na profissão o não foi, parecia-o no trato familiar, e
respeito que tinha aos nossos, especialmente ao Padre Manuel da Nóbrega, a quem
consultava em tudo, e sem cujo conselho nada obrava”.[2]
Situação encontrada por
Mem de Sá
Vinha o nobre português já sabendo que
aqui não encontraria comodidades, mas um trabalho árduo e martirizante. Num
esboço biográfico de Mem de Sá, São José de Anchieta assim se refere ao estado
das coisas no Brasil quando da chegada do grande governador:
“Envolta,
há séculos, no horror da escuridão idolátrica, houve nas terras do Sul uma
nação, que dobrava a cabeça ao jugo do tirano infernal, e levava uma vida vazia
de luz divina. Imersa na mais triste miséria, soberba, desenfreada, cruel,
atroz, sanguinária, mestre em trespassar a vítima com a seta ligeira, mais
feroz que o tigre, mais voraz que o lobo, mais assanhada que o lebréu, mais
audaz que o leão, saciava o ávido ventre com carnes humanas. Por muito tempo
tramou emboscadas: seguia, no seu viver de feras, o exemplo do rei dos
infernos, que por primeiro trouxe a morte ao mundo, enganando nossos primeiros
pais. Dilacerava o corpo de muitos com atrozes tormentos, e, embriagado de
furor e soberba ia enlutando os povos cristãos com mortes freqüentes”[3]
Mais adiante, na mesma obra, São José
de Anchieta completa a descrição do
estado bárbaro e desumano dos nossos índios:
“(...)
O bárbaro expandindo sua ira quebrantava as leis da natureza e os divinos
preceitos do Pai onipotente cevando as queixadas bestiais em corpos humanos!
Essa raça selvagem, sem a menor lei, perpetrava crimes horrendos contra os
mandados divinos, proferindo impunemente ameaças contínuas e altivos discursos.
Então com arrogância o índio sanhudo olhava para os cristãos, e estes,
entrincheirados detrás de seus muros, tremiam de pavor vergonhoso: como quando
lobos vorazes, que a fome impiedosa açula e avassala, rangendo os dentes,
cobiçam, à ronda do aprisco, espostejar os tenros cordeiros e extinguir a sede
ardente no sangue que sugam; lá dentro as ovelhas estremecem e fremem com medo
das feras que rondam fora, mal confiadas no aprisco”[4]
Para piorar, havia ainda a triste
situação de alguns clérigos corrompidos,
que estimulavam este estado de coisas em vez de combatê-lo. Tornava-se
necessário fazer algo para pôr fim a tudo isso. Os padres da Companhia de
Jesus, sozinhos, ainda pouquíssimos e divididos ao longo de terras tão
extensas, necessitavam de um apoio maior par seu trabalho. Era necessário que
surgisse um herói, um santo de grande quilate para dar início a este trabalho
de suporte das missões jesuíticas. Quem seria este herói?
Mem de Sá:
“Mas
um dia o Pai onipotente volveu os olhares do reino da luz à noite das regiões
brasileiras, às terras que suavam, aos borbotões, sangue humano. Então
mandou-lhes um herói das plagas do Norte, um herói que vingasse os crimes
nefandos, que banisse as discórdias, freasse o assassínio, bárbaro e contínuo,
acabasse com as guerras horrendas, abrandasse os peitos ferozes e não sofresse
impassível cevar-se em sangue de irmão queixadas humanas...”[5]
Apoio governamental aos
jesuítas
Pode-se dizer que, de algum modo,
houve uma ação típica da Contra-Reforma no Brasil. Os princípios
renascentistas, com mistos de luteranismo e calvinismo, infestavam as ordens
religiosas, a maioria em franca decadência com a frouxidão dos costumes e de
suas regras. Isto não se dava, porém,
com a Companhia de Jesus, onde a ortodoxia, a fidelidade à Igreja, o fiel
cumprimento de suas regras, mantinham seus membros em franca oposição aos
avanços revolucionários. Era necessário,
porém, o apoio governamental para que a ação dos padres jesuítas obtivesse
êxito. Deveria haver uma ação combinada para operar a conversão dos índios e a
transformação do Brasil num país cristão.
Em fins do ano seguinte à chegada de
Mem de Sá, a Rainha manda uma carta aos vereadores e procuradores da cidade de
Salvador, onde expressa o seu empenho em que os padres da Companhia de Jesus
sejam ajudados em seu apostolado, exigindo dos portugueses que tratem bem dos
índios:
“(...)
aos gentios que se fizerem cristãos tratem bem; e não os avexeis; nem lhes
tomeis suas terras; porque, além disto assim ser razão e justiça, receberei
muito contentamento em o assim fazerdes, pelo exemplo que os outros gentios
receberão. Agradecer-vos-ei muito terdes
destas coisas muita lembrança e em efetuardes como confio; porque do contrário
poderá deixar de me desaprazer muito”[6]
O jugo da lei predispôs
os indígenas às graças divinas
Era opinião desposada pelos jesuítas,
como consta no “Diálogo Sobre a Conversão dos Gentios” do Padre Manuel da
Nóbrega, de que era urgente impor aos índios o jugo da Lei, pois somente assim
ficariam dóceis à atividade missionária dos padres. E quem poderia fazê-lo
senão o Governador? Era uma exigência
primordial de amparo ao trabalho apostólico dos missionários jesuítas. E foi
assim que Mem de Sá, “de início, para
poder jungir esses rudes selvagens ao jugo da lei e moldá-los pela doutrina de
Cristo, ordena que deixados recôncavos, campos, florestas, acorram de todas as
partes a um mesmo local e aí construam suas casas, ergam novas aldeias e
comecem a deixar os antigos costumes de feras; não vagueiem daqui e dali, como
tigres, pelos cerrados”[7]
Mem de Sá começa por acabar com o
nomadismo dos índios, ordenando que viessem morar em aldeias fixas. Somente a
partir daí se poderia aplicar as leis. Tal medida era necessária e urgente.
Outros padres jesuítas afirmam a mesma coisa. O Padre Francisco Pires, por
exemplo:
“(...)
porque entrando a justiça com eles com a espada nua e campal guerra, por boa
indústria do Sr. Mem de Sá, Governador, ficam de paz, e como a têm
corporalmente nós trabalhamos de a dar espiritualmente e por este meio se há
feito tanto fruto, quanto Vossa Reverendíssima poderá lá entender por carta, de
maneira que as dificuldades que eu para sua virtude achava se diminuem e os
meios se executam e homem recolhe o que há tantos tempos com trabalhos e
lágrimas derramou...”[8]
Como conseqüência, os índios começaram
a acorrer para serem doutrinados de forma mais ordenada, sem os perigos da
dispersão e do nomadismo, afirmando o Padre Pires que “agora posso com razão escrever que são ligeiros para irem acorrer à
igreja, e se suas gargantas eram “sepulchrum patens” para matarem e comerem
vivos, agora estão abertas para louvarem a Cristo...”[9]
Da mesma forma, o padre Ruy Pereira
escrevia: “(...) ajudou grandemente a
esta conversão cair o senhor Governador na conta, e assentar que sem temor não
se podia fazer tudo... ...ordenou que
houvesse em cada povoação destas um dos mesmos índios, que tivesse carrego
de prender em um tronco os que fizessem
cousa que pudessem estorvar a conversão...
...E hão tanto medo a estes troncos, que, depois de Deus, são eles causa
de andarem no caminho e costumes que lhes pomos...”[10]
Outro jesuíta, o Padre Antonio Pires,
afirma que os próprios índios pedem para a disseminação destes “troncos”,
espécie de meirinhos, “para terem cuidado de prenderem os ruins”. O Padre Braz Lourenço conta um caso em que
uma índia cristã cometera adultério, tendo o adúltero sido condenado a perder
suas roupas para o marido daquela com quem havia adulterado e ser metido num
tronco, “de modo que ficaram tão
atemorizados os outros, que não se achou dali por diante fazerem outro
adultério; mas se algum peca logo é acusado ao Padre, o qual manda que o
castiguem”.[11]
b)
Inicia-se a verdadeira conversão dos índios
Antes da chegada de Mem de Sá e a
aplicação de tais métodos, alguns índios se convertiam, é verdade, eram
batizados e prometiam mudar de vida. Mas não perseveravam, mudavam de propósito
rapidamente, influenciados, principalmente, pelos feiticeiros que viviam
arredios. Num dia convertiam-se mil e já no outro dia os mesmos mil fugiam para
outro local em seu nomadismo e recomeçavam sua antiga vida pagã. A intervenção
do Governador Mem de Sá foi verdadeiramente milagrosa, segundo São José de
Anchieta:
“Foi
por vosso ministério que tão grandes milagres se realizaram. Vós, mais velozes
que os ventos, a nossas plagas trazeis em revoadas contínuas as paternas
disposições da Providência divina. Dizei
vós as leis e a ordem que o ilustre e piedoso governador implantou entre povos
tão feros, para afinal ser honrado nestas paragens incultas o nome vitorioso,
forte e imortal de Jesus!”[12]
Assim, foi o Governador Mem de Sá que
solidificou a cristianização de nossos selvagens. Os jesuítas são unânimes em afirmar que o
Governador, com seu zelo por Cristo Nosso Senhor, castigava os delinqüentes com
muita prudência e temperança, de forma que o castigo edificasse e não
destruísse a obra da catequese. Isto também serviu para solidificar a amizade
dos índios com os padres e os bons cristãos, levando-os a abandonar com gosto
seus antigos costumes bárbaros por outros cristãos.
Os primeiros aldeamentos feitos na
forma determinada por Mem de Sá, isto é, em lugares fixos, foram fundados na Bahia
a partir de 1558, com as aldeias já com denominações cristãs: São Paulo, São
João, Espírito Santo e Santiago. Em Piratininga havia apenas a de São Paulo,
fundada 4 anos antes por São José de Anchieta.
Temor e sujeição:
condição para civilizar o índio
O Padre Manuel da Nóbrega foi um dos
propugnadores da tese de que somente através do temor e sujeição poder-se-ia
civilizar duravelmente os nossos índios. Os princípios estão enunciados na
seguinte carta, dirigida ao Rei de Portugal:
“Depois
que o Brasil é descoberto e povoado, têm os gentios mortos e comidos grande
número de cristãos e tomadas muitas naus e navios e muita fazenda. E
trabalhando os cristãos por dissimular estas coisas, tratando com eles e
dando-lhes os resgates, com que eles folgam, e têm necessidade, nem por isso
puderam fazer deles bons amigos, não deixando de matar e comer, como e quando
puderam. E se disserem que os cristãos os salteavam e tratavam mal, alguns o
fizeram assim, e outros pagariam o dano que estes fizeram, porém a outros, a
quem os cristãos nunca fizeram mal, os gentios os tomaram e comeram e fizeram
despovoar muitos lugares e fazendas grossas; e são tão cruéis e bestiais, que
assim matam aos que nunca lhes fizeram mal, clérigos, frades, mulheres de tal
parecer, que os brutos animais se contentariam delas e lhes não fariam mal. Mas
são estes tão carniceiros de corpos humanos que, sem exceção de pessoas, a
todos matam e comem e nenhum benefício os inclina nem abstém de seus maus
costumes, antes parece, e se vê por experiência, que se ensoberbecem e fazem
piores com afagos e bom tratamento. A prova disto é que estes da Bahia, sendo
bem tratados e doutrinados, com isso se fizeram piores, vendo que se não
castigavam os maus e culpados nas mortes passadas; e com a severidade e castigo
se humilham e sujeitam.
“Depois
que Sua Alteza mandou Governadores e justiça a esta terra, não houve saltearem
os gentios nem tomarem-lhes o seu, como antes, e nem por isso deixarem eles de
tomar muitos navios e matarem e comerem muitos cristãos, de maneira que lhes
convém viver em povoações fortes e com muito resguardo e armas, e não ousam de
se estender e espalhar pela terra, para fazerem fazendas, criação e viver pela
terra dentro, que é larga e boa, em que poderiam viver abastadamente, se o
gentio fosse senhoreado ou despejado, como poderia ser com pouco trabalho e
gasto, e teriam vida espiritual, conhecendo o seu Criador, e vassalagem a S.
A., e obediência aos cristãos, e todos viverem melhor e abastados e S. A. teria
grossas rendas nestas terras.
“Este
gentio é de qualidade que não se quer por bem se não por temor e sujeição, como
se tem experimentado, e por isso, se S. A. os quer ver todos convertidos, mande
os sujeitar e deve fazer estender os cristãos pela terra adentro e
repartir-lhes os serviços dos índios àqueles que os ajudarem a conquistar e
senhorear como se faz em outras partes de terras novas, e não sei como sofre a
geração portuguesa, que entre todas as nações é a mais temida e obedecida,
estar por toda esta costa sofrendo e quase sujeitando-se ao mais vil e triste
gentio do mundo” [13]
Apoio da nobreza da
terra, então emergente
Mas, se os jesuítas e Mem de Sá
procuravam criar condições para converter e civilizar os índios, era necessário
que obtivessem o apoio da chamada “nobreza da terra”, a pequena elite emergente
que se mudara de Portugal para o Brasil mas já se dizia da terra. Muitos deles
vieram cheios de erros liberais e só pensavam em si mesmos, tomados pelo
espírito da burguesa mercantilista. Alguns desejavam que os jesuítas cuidassem
somente dos cristãos portugueses, mantendo os índios em suas aldeias, separados
e pagãos, muitos até mantidos impunemente como escravos ou expulsos para o
interior. Assim ficariam longe de encarar o problema que teriam por obrigação
cristã de enfrentar: a catequese e cristianização daquele povo. No entanto, a ação apostólica dos jesuítas
visou também mudar tais homens, combatendo seus erros. A ação do Governador foi
vital para este fim. O Padre Leonardo do
Vale refere que tanto o Governador quanto o Ouvidor Geral eram pessoas de boa
consciência e diligenciaram para demonstrar o erro em que estavam incorrendo
alguns portugueses que aqui moravam.
Dentro de algum tempo formou-se um
pugilo de homens que rejeitavam aquelas concepções liberais e renascentistas,
adotando a concepção católica esposada pelos jesuítas. Dentre eles destacam-se,
além do próprio Mem de Sá, seu filho Fernão de Sá (que morreu em combate contra
os índios), Estácio de Sá, Simão da Gama de Andrade, etc. Este último havia
sido comandante do Galeão São João Batista, capitânia da pequena armada de 1550
em que viera a segunda missão jesuítica, preferindo então ficar morando no
Brasil. Recebeu terras em 1552, prosperou e foram, tanto ele como sua melhor D.
Leonor Sales, muito elogiados pelos jesuítas que referem-nos em suas cartas ora
como padrinho dos índios, ora como benfeitor nas suas festas. Foi ele que
ajuntou os índios numa Vila que deu o nome de Nossa Senhora da Vitória. Era uma
invocação recente, a mesma da batalha de Lepanto havida 21 anos depois, mas
escolhida pelos portugueses sempre que venciam batalhas memoráveis. E, no caso,
o nome foi escolhido porque os portugueses venceram grande batalha contra os
índios na Bahia. Hoje, o nome de Vitória continua na Bahia, tratando-se de um
bairro de tradição em Salvador.
O padre Antonio Blásquez comenta como
Simão da Gama promovia as festividades daquele tempo:
“(..)
Tomou o assunto de fazer esta festa o Sr. Simão da Gama, como outras vezes o
tem feito em alguns batismos solenes, porque posto que quanto ao mundo tenha
muita possibilidade e aparelho, acrescenta-se a isto ser ele mui devoto e
afeiçoado à Companhia; assim, pois, chegando o tempo, partiu de sua casa com a
mulher e filhos e entrou por esta povoação de S. Iago com um tambor e bandeira e
com grande alboroto e prazer, após ele iam tanto os romeiros que vinham, e
tanto assim o estrondo dos que caminhavam por terra como os que chegavam por
mar, que era espanto vê-los”[14]
O capitão-mor do Espírito Santo,
Belchior de Azevedo, foi um exemplo de como tais homens estavam empenhados em
jugular os índios ainda bárbaros: acompanhou Estácio de Sá em 1564, quando
tiveram de travar vários combates contra os tamoios e franceses, realizando
proezas heróicas juntamente com o chefe índio cristão Martim Afonso. Numa
destas proezas o capitão-mor, com apenas 8 canoas, deu combate a vinte dos
inimigos, aprisionando duas. Um jesuíta escreveu:
“O
Capitão a que chamam Belchior de Azevedo, pessoa mui nobre e para este ofício
mui suficiente, assim por sua virtude e saber como por ter ele ânimo para
sujeitar estes índios e resistir aos grandes combates dos Franceses, é muito
nosso devoto e ajuda e favorece em todas as coisas tocante à conversão dos
Gentios e em tudo o de mais que cumpre a serviço de Nosso Senhor... ...e é muito nosso familiar, e nos manda
comumente ajudar com suas esmolas”.[15]
c)
Espírito católico do Governador Mem de Sá
Esta plêiade insigne de homens tinha o
Governador como exemplo maior de virtudes, de espírito cristão, de
catolicidade. Mem de Sá era não só o administrador político da terra, mas o
amansador dos índios, o guerreiro, o católico praticante e amigo dos padres, o
padrinho dos neófitos e dos noivos, distribuindo justiça e bondade a todos.
Consumiu sua vida toda no Brasil, onde veio a falecer. Numa só cerimônia de
batismo, Mem de Sá foi padrinho de 84 crianças, o que fazia sempre com alegria
e acolhimento dos pequeninos.
Certa ocasião instaram e escreveram à
Rainha pedindo que fossem enviadas mulheres virtuosas para ajudar a doutrinar
as meninas. Prontamente secundou o pedido o Governador, escrevendo também à
Rainha neste sentido; assim fez, segundo informa o padre Antonio Blásquez, “por zelo do Governador, que no negócio da
conversão nos ajuda com todas as suas forças, e se nestes dois anos se tem
muito frutificado “in vinea Domini”, depois do Favor Divino, tem sido pelo
cuidado e indústria que ele pôs neste negócio.” [16]
O Padre Francisco Pires também o
elogia merecidamente ao afirmar:
“É
o mais solícito Capitão que eu vi; parece que toda a sua vida o usou; sua
humildade e constância e paciência me têm atônito, porque a dois ou três homens
a quem repreendeu com aspereza lhe vi pedir-lhe perdão com o barrete na mão.
Sofre muitas coisas, “et cum spiritu
lenitatis” leva tudo e mostrando muita perfeição, em suas palavras e obras com
muita paciência. Mandou-me que de sua mesa desse o que me parecesse aos índios
principais que ao derredor estão, e de sua despensa tomasse tudo o que quisesse
aos pobres, e assim o faço com muita edificação de todos. Toda a sua boca é
cheia de contentar a todos, e tudo o que faz parece proceder de mui reta
intenção e assim o diz estes senhores Capitães, que lhes quer descanso”.
Esta religiosidade, este amor à Causa
Católica, vinha de uma profunda humildade e amor a Deus. Assim o refere o padre
Ruy Pereira:
“E
isto depois de Deus deve-se ao Senhor Governador e à sua prudência e zelo,
porque ainda que ele professara a vida da Companhia, não sei que mais pudera
fazer na conversão, e tanto fazia que, por nos acreditar com os índios, de um
certo modo se desacreditava a si, dizendo aos que deles lhe vinha falar sobre
cousas que tocavam a conversão, que os Padres eram os que faziam essas cousas,
que com eles fossem tratar, e o que eles determinassem isso seguissem; e
fazendo um índio principal uma cousa que merecia castigo, e pedindo-lhe disso
perdão, ele o mandou por dois seus escravos trazer à nossa casa, dizendo-lhe
que ele lá se aviesse com os Padres, que se deles alcançasse o perdão ele
também lhe perdoaria; e assim veio o índio com muita humildade a pedir perdão
de joelhos, e o alcançou.”[17]
Herói abnegado,
desprendido de tudo, com aspecto patriarcal
A História registra o Governo de Mem
de Sá como um dos mais profícuos para o Brasil em formação. Qualidades de guerreiro e de bom
administrador são reconhecidas pelos historiadores, mas faltou reconhecer-lhe
as qualidades de herói abnegado, desprendido de tudo. Em carta dirigida ao
reino em 1560 pede que lhe mandem de volta para Portugal, dizendo que não era o
homem ideal para o Brasil. Eis suas razões:
“Eu
nela gasto muito mais do que tenho de ordenado: o que me pagam é em
mercadorias, que me não servem. Eu fui sempre ter guerra e trabalhos onde hei
de dar de comer aos homens, que vão pelejar e morrer, sem soldo, sem
mantimentos, porque o não há para lho dar. Sou velho, tenho filhos que andam
desagasalhados...”[18]
Seu pedido não obteve aprovação do
Rei, terminando seus dias no Brasil, onde faleceram também seus filhos e
esposa. Um de seus filhos morreu lutando contra os selvagens. Como recompensa
resta-lhe apenas a homenagem dos seus pôsteres através de um relicário colocado
na Catedral da Sé em Salvador, onde repousam seus restos mortais.
São José de Anchieta descreve que tipo
de herói era ele:
“Eis que, liberta dos perigos do mar e
de há muito esperada, uma esquadra fundeia na baía a que todos os Santos
legaram nome. Trazia, salvo das fauces do oceano, um singular herói, de
extraordinária coragem, Mem, que do sangue de nobres antepassados e de seiva
ilustre de longa ascendência herdara o sobrenome de Sá. Superiores aos anos, ornam-lhe
o rosto barbas brancas e majestosas: alegres as feições, sombreadas de senil
gravidade, vivos os olhos, másculo o arcabouço do corpo, frescas ainda, como de
moço, as forças de adulto. Muito mais excelente é a alma: pois lha poliram vasta ciência, com a
experiência longa do mundo, e a arte da palavra bela. Arraigado no seio traz um
amor de Deus, santo, filial, verdadeiro e a fé de Cristo jamais desmentida. No
peito, incendiado pelo sopro divino, ferve-lhe o zelo de arrancar as almas
brasílicas às cadeias do inferno”. [19]
Fernão de Sá
O filho de Mem de Sá, Fernão de Sá,
foi para a guerra ainda jovem, com dezesseis anos. São José de Anchieta conta
como o jovem morreu mártir na guerra contra os índios:
“O
herói, em vão magnânimo, ao ver que os companheiros levaram para longe os
barcos e que a turba inimiga, em linha de batalha e entre gritos de guerra,
começa a apertá-los e, brada: “Para onde corremos, colegas? Já não nos resta
esperança alguma! O inimigo nos cerca de toda a parte, de toda a parte o
oceano! A terra nos falta! Buscaremos a armada, cortando com o peito as ondas?
Para onde dirigir-nos no aperto presente? Pois, rompamos à ponta da espada
estas hordas! Paira sobre nós a morte? – que paire! Oh! Que belo deixar por
Deus as vidas caras na arena sangrenta e comprar com esse sangue a vida de
muitos!” Disse, e logo (pois já o ataque dos índios não dava lugar a demora), à
invocação do nome de Cristo, com os colegas se arroja contra os selvagens,
postado a arrastar na própria morte os corpos de mil inimigos e a rasgar com o
punhal reluzente mil feridas sangrentas. Os inimigos se apinham ao redor e o
carregam com gritos de terror e com flechas:
não lhe dá a hora descanso, como caçadores à volta do leão que freme
asseteado: ele a raivar ruge
horrendamente e feroz ameaça com o olhar torvo, ora este, ora aquele,
impertérrito rasga com a boca em sangue os corpos que alcança: Eles o apartam,
fincam-lhe lanças nas costas, nos flancos á porfia, até que todo roto de
feridas sucumbe e a terra treme ao baque dos membros robustos. Assim o enxame dos inimigos em cerco cerrado
estreitou o jovem: esse o fere com a clava, aquele com setas e vão se
multiplicando os esforços. Em algazarra se arrojam sobre ele. Sem tréguas,
apertam-no daqui e dali, insaciáveis. Redobram os golpes: as flechas lançadas
de todos os lados já o cobrem todo, as armas tinem, rompe-se a malha de
couraça, já não resiste a tantos golpes o escudo. Copioso suor lhe inunda o
corpo e por completo o abandonam as forças:
a sede lhe queima a garganta e o pobre exala pelos pulmões a alma
ofegante. Já tem o herói o rijo peito crivado de inúmeras setas, o sangue o
cobre todo e lhe empana a beleza dos membros. A praia treme á sua queda.
Tombando os olhos moribundos se cravaram na altura e a alma invencível se
evolou às plagas celestes”[20]
A própria autoridade
inspira a prática de virtudes cristãs
Uma virtude é uma força, mas não uma
força qualquer, pois é proveniente do caráter fortalecido ao longo de muitos
anos ou de uma ação milagrosa momentânea. Trata-se de uma forma moral adquirida
da prática contínua de atos em busca de uma perfeição. Mas tal só se obtém somando-se e apoiando-se
uma virtude à outra; dificilmente uma
virtude cresce sozinha. Por exemplo, é necessário perseverança, quer dizer,
procurar enraizar o hábito da prática daquela virtude através de sua prática
constante e sem desfalecimento, diariamente, momento a momento, de maneira que
os embates contra ela sirvam mais para fortalecê-la do que diminuí-la. Como,
pois, um indígena que antes era bárbaro, impuro, orgulhoso, repentinamente
poderia ficar manso, casto e humilde? Coadjuvados uns pelos outros e pelos
Padres, aos poucos eles foram crescendo em virtudes cristãs, a bondade
autêntica aspirada pela alma humana. Mas, pouco se obteria de sucesso sem que
houvesse uma autoridade que coadjuvasse a todos nestas práticas.
O Padre Antonio Pires narra um
episódio que demonstra esta mudança inclusive entre aqueles que ainda não eram
cristãos, ou que não o eram inteiramente por ainda praticar alguns costumes
bárbaros:
“Logo
nesta conjunção sucedeu que outro Negro[21], o
mais soberbo desta terra, em cuja aldeia entendemos, em tempo do governador D.
Duarte da Costa, fazer casas para os doutrinar, e como ele vivia em tanta
liberdade que parecia não temer a ninguém, não desprezou e não quis que
fizessem lá casa; antes, medindo os
tempos todos por uma medida, também agora desprezou as leis que já disse, e
comeu carne humana com todos os seus em grandes festas. Ao qual o Governador [Mem de Sá] mandou
chamar, ficando assentado que se não viesse, o mandaria logo prender, o qual,
conhecendo a sujeição veio logo, tendo para si que em chegando o haviam de
matar, como o língua o foi chamar e contou; e antes que se partisse dos seus,
lhes fez uma fala aconselhando-lhes que trabalhassem de ser bons e não curassem
de ir dali, porque ele pagaria por todos. Sucedeu a cousa que, vindo o Negro à
casa do Governador, foi mal recebido dele, e o Negro se lhe lançou aos pés e
lh’os beijou e pediu perdão, oferecendo-se logo a que fossem lá os Padres
porque estavam aparelhados para fazer tudo o que lhe mandassem; tudo isso com tais sinais de contrição que
mereceu perdoar-lhes isto. Veio logo outro Principal a fazer o mesmo. Estes são
os frutos que o Senhor vai colhendo...”[22] O selvagem, neste caso, agiu mais por
temor, mas mesmo assim abriu um precedente para a prática da humildade que foi
logo seguido por outros. Em anos anteriores ele não teria atendido ao
Governador e o teria enfrentado numa guerra. Mas Mem de Sá já tinha superado
tal situação: todo chefe índio que desafiasse sua lei e comesse carne humana em
seus rituais de antropofagia era chamado e metido na prisão. Os índios temiam
mais uma prisão do que a própria morte.
Biografia resumida de
Mem de Sá
“Mem de Sá (1498-1572)
foi o terceiro governador geral do Brasil. Em sua administração, os franceses
foram expulsos da Guanabara, foi fundada a cidade de São Sebastião do Rio de
Janeiro e foram formadas as primeiras missões com objetivo de catequizar os
índios. Foi também, assinada pela Regente D. Catarina, viúva de D. João III, a
Carta Régia de 29 de março de 1559, autorizando os senhores de engenho a
mandarem vir da África até 120 escravos para cada propriedade.
Mem de Sá (1498-1572)
nasceu em Coimbra, Portugal, provavelmente em 1498. Formado em Direito, foi
desembargador, corregedor e nas horas vagas fazia versos. Era irmão do poeta Sá
de Miranda. Em 1556, D. João III o nomeia governador geral do Brasil. Até então
o que o ligava a colônia portuguesa, era uma sesmaria na Capitania de Ilhéus,
que lhe fora doada em 1537, mas que ele jamais visitara.
No dia 10 de novembro de
1556, no Brasil, o comandante francês, Villegaignon desembarcava onde seria o
Rio de Janeiro, com seiscentos homens. Conquistaram os índios e construíram o
forte Coligny. Projetaram a fundação da França Antártica. Duarte da Costa, o
segundo governador geral, não conseguira evitar essa invasão.
Mem de Sá chegou a
Salvador no dia 28 de dezembro de 1557. Assumiu o governo em 3 de janeiro de
1558. Era preciso expulsar os franceses e conseguir que os índios deixassem de
lutar entre si ou contra os portugueses. Combater a antropofagia era também um
problema difícil. Nesse mesmo ano, a pedido do Donatário Vasco Fernandes
Coutinho, Mem de Sá organiza uma expedição contra os índios do Espírito Santo.
Nas lutas morre seu filho Fernão de Sá.
O apaziguamento dos
índios foi resolvido em boa parte com o auxilio dos Jesuítas e com a formação
das missões, que chegaram a abrigar 5 mil pessoas. Ao mesmo tempo, que os
índios aprendiam os costumes cristãos, os padres conheciam a língua e os
hábitos indígenas. A Companhia de Jesus passa a receber subvenção oficial.
Em 29 de março de 1559,
é assinada pela Regente D. Catarina, viúva de D. João III, a Carta Régia,
permitindo a importação de 120 escravos africanos, para cada senhor de engenho,
permitindo criar uma agricultura de exportação. No fim do século o Brasil
dominava o mercado mundial do açúcar.
Em 1560 as forças de Mem
de Sá atacam e destroem a fortificação dos franceses que ainda permanecem na
Guanabara. Em 1563, Estácio de Sá, sobrinho do governador geral, chega à Bahia,
trazendo reforços de Portugal, para um novo ataque aos franceses. No dia 1 de
março de 1565, Estácio de Sá inicia a construção da cidade de São Sebastião do
Rio de Janeiro. Em 1567, ferido na batalha decisiva que expulsou os franceses,
Estácio de Sá morre, no dia 20 de janeiro.
Em 1568, Mem de Sá pede
a nomeação de outro governador geral para substituí-lo. Em 1570, Luís de
Vasconcelos é nomeado, mas não chega a tomar posse, morre no naufrágio do navio
que o conduzia à Bahia.
Mem de Sá faleceu em
Salvador, Bahia, no dia 12 de março de 1572”
Fonte:
https://www.ebiografia.com/mem_de_sa/
[1] “Crônica da Companhia de Jesus” – Pe. Simão de Vasconcelos - Editora Vozes, vol 1, págs. 33/34
[2] op. cit. pág. 34
[3] “De Gesti
Mendi de Saa” – Pe. Joseph de Anchieta, SJ – Edições Loyola, 1986, pág. 93
[4] op. cit. pág. 127
[5] op. cit. pág. 93
[6] “História Geral do Brasil”, Edições Melhoramentos –Francisco Adolfo de Varnhagen, vol.1, 9ª. Edição, 1978, pág. 303
[7] “De
Gssti Mendi de Saa” – Pe. Joseph de Anchieta, SJ – Edições Loyola, 1986, pág.
137
[8] ”Cartas Jesuíticas 2 – Cartas Avulsas” –
Azpilcueta Navarro e outros – Ed. Itatiaia, págs. 273/274
[9] op. cit. pág. 274
[10] op.; cit. pág. 286
[11] op. cit. págs. 304 e 367
[12] “De Gesti
Mendi de Saa” – Pe. Joseph de Anchieta, SJ – Edições Loyola, 1986, págs.
136/137
[15] op. cit. pág. 365
[16] op. cit. pág. 255
[17] op. cit. pág. 285
[18] “História Geral do Brasil”, Edições Melhoramentos
–Francisco Adolfo de Varnhagen, vol.1, 9ª.
Edição, 1978, pág. 343
[19] “De Gssti Mendi de Saa” – Pe. Joseph de Anchieta, SJ – Edições Loyola, 1986, pág. 93
[20] op. cit. págs; 115/117
[21] Negros, como eram chamados os índios por alguns dos padres jesuítas.
[22] “Cartas Jesuíticas 2 – Cartas Avulsas” – Azpilcueta Navarro e outros – Ed. Itatiaia, pág. 226
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