Por: Jurandir Josino Cavalcante
Com os filhos
Quando um filho nasce, ou quando está para nascer, quantos projetos faz o pai sobre o seu futuro: estudar, ser inteligente, ser sadio, ser forte, ser sábio, ser doutor, ser líder, ser querido de todos, ser admirado, ser bom para o próximo, fazer o bem... E quando esta unidade se multiplica, para dois, três, oito, se multiplicam igualmente aqueles projetos, porque o pai deseja para os demais o que queria para o primogênito. Os pequenos vão evoluindo, no tamanho, na idade, na mentalidade. O pai aprende e reaprende muito, porque aprende com eles coisas novas ou porque revive o que estudou no passado. Cabe, portanto, ao pai olhar a cada um como filho único, dedicar-lhe toda a atenção, acompanhá-lo pari passu, estar junto sempre, a fim de fazer valer, o melhor possível, aqueles projetos iniciais.
Nessas duas fases: primeiro, no esforço, preocupação, temores, dúvidas, incertezas quanto aos filhos que vão nascer, que vão ser gerados; em seguida, a luta para bem conduzi-los, o doar-se por eles, com abnegação, se preciso, literalmente, por eles dar até o sangue, sentimos que o pai vai além do herói, já que este é o semideus de uma determinada façanha, e aquele é o próprio “deus” de toda uma vida, ou a vida toda.
Surge-me aqui uma terna lembrança de uma etapa de minha infância. Todos os domingos ia ouvir[1] missa na igrejinha de Nossa Senhora Aparecida, acompanhado de meu pai. Na base do altar, um pelicano alimentava os filhotes com o sangue que retirava através de bicadas no peito. Os antigos viram a ave abrir o bico para alimentar os filhos e acharam que retirava o produto de suas próprias entranhas. Passaram a considerá-lo símbolo do amor maternal abnegado. A Igreja contemplou tão bela simbologia e disse: é o próprio Jesus, que deu Seu sangue para redimir os filhos, e chamou-o de “Pio Pelicano”, isto é, Piedoso Pelicano. Eu ficava a observar, curioso, durante a cerimônia, aquele alto-relevo, sem entender do seu significado místico. Não imaginava também que, anos depois, com os castanhos quase todos desbotados em grisalhos, eu veria aí igualmente um símbolo natural, dentro do qual eu poria o meu pai.
Sim, descontando a infinita diferença entre Jesus Cristo e o meu pai, temos a considerar que ele tirou de si tudo o que pôde, até consumir-se. Porque queria ver os filhos bem sucedidos, felizes, altivos, orgulhosos. Se ele tinha vocação para assumir o papel de um novo Cristo, alter Christus, é preciso ter em vista as suas virtudes, as duas maiores: a da bondade e a da paciência, pois aplicou-as franciscanamente, numa demonstração de entrega e acrisolado amor paternal.
Em 1964, Jair, o seu penúltimo filho, foi baleado; encontrava-me em casa, ouvi o estampido e saí correndo. Na rua deparei-me com o papai já com o filho estendido nos braços. O seu rosto era de aflição, de confusão, de desespero. Não sabia o que fazer com o garoto banhado de sangue. O seu coração procurava em acelerado bombear o sangue para a cabeça, de onde deveria sair a solução para essa tragédia. Os músculos tesos, os vincos da face mais profundos, a voz embargada. Era ele a própria figura do pai que tirava o filho dos escombros de um terremoto, a vida se acabava ali se o filho não sobrevivesse. Enfim, veio o socorro, e a cura meses depois. No calendário da vida, estava marcado: aquele pai sofreria algum tempo depois ao pé do leito daquele mesmo filho, vendo-o despedir-se do mundo, tão jovem.
Transcorria assim a difícil caminhada desse homem, que escolhera viver para os seus, mais do que para si. Sete filhos agora compunham a sua vinha. Tinha-se que adubar, regar, afastar a erva daninha, para colher os bons frutos quando as próprias forças estivessem rareando. O vinho que daí resultasse, sorveria nas bodas de uma velhice feliz, junto com aquela com a qual dividira as emoções de uma vida laboriosa e repleta de bênçãos celestiais. Era aguardar, “Deus pode ser que tarde, mas não falta”.
Na década imediata emigrou a única filha, para sempre. Foi um relâmpago que cortou o seu céu, numa noite tempestuosa. Os olhos não mais verteram lágrimas, apenas se arregalaram, assustados, como a procurar luz no breu da noite. Olharam para os sobreviventes, balbuciando: “Meus filhos, meu tesouro”. O coração sangrara, num bater pungente... A voz embargara e os lábios secos não lhe permitiram pronunciasse qualquer lamento. Para consolo, a meia dúzia de apóstolos seguia fielmente os seus passos, imitando-o, repetindo as suas palavras, os seus ensinamentos, não havia temer o futuro, ali estava a base, o seu sustentáculo, o vinho curtido com amor.
[1] Nessa época ainda se “ouvia” missa, só muito depois é que a Igreja adotou o termo “participar” da missa.
Nessas duas fases: primeiro, no esforço, preocupação, temores, dúvidas, incertezas quanto aos filhos que vão nascer, que vão ser gerados; em seguida, a luta para bem conduzi-los, o doar-se por eles, com abnegação, se preciso, literalmente, por eles dar até o sangue, sentimos que o pai vai além do herói, já que este é o semideus de uma determinada façanha, e aquele é o próprio “deus” de toda uma vida, ou a vida toda.
Surge-me aqui uma terna lembrança de uma etapa de minha infância. Todos os domingos ia ouvir[1] missa na igrejinha de Nossa Senhora Aparecida, acompanhado de meu pai. Na base do altar, um pelicano alimentava os filhotes com o sangue que retirava através de bicadas no peito. Os antigos viram a ave abrir o bico para alimentar os filhos e acharam que retirava o produto de suas próprias entranhas. Passaram a considerá-lo símbolo do amor maternal abnegado. A Igreja contemplou tão bela simbologia e disse: é o próprio Jesus, que deu Seu sangue para redimir os filhos, e chamou-o de “Pio Pelicano”, isto é, Piedoso Pelicano. Eu ficava a observar, curioso, durante a cerimônia, aquele alto-relevo, sem entender do seu significado místico. Não imaginava também que, anos depois, com os castanhos quase todos desbotados em grisalhos, eu veria aí igualmente um símbolo natural, dentro do qual eu poria o meu pai.
Sim, descontando a infinita diferença entre Jesus Cristo e o meu pai, temos a considerar que ele tirou de si tudo o que pôde, até consumir-se. Porque queria ver os filhos bem sucedidos, felizes, altivos, orgulhosos. Se ele tinha vocação para assumir o papel de um novo Cristo, alter Christus, é preciso ter em vista as suas virtudes, as duas maiores: a da bondade e a da paciência, pois aplicou-as franciscanamente, numa demonstração de entrega e acrisolado amor paternal.
Em 1964, Jair, o seu penúltimo filho, foi baleado; encontrava-me em casa, ouvi o estampido e saí correndo. Na rua deparei-me com o papai já com o filho estendido nos braços. O seu rosto era de aflição, de confusão, de desespero. Não sabia o que fazer com o garoto banhado de sangue. O seu coração procurava em acelerado bombear o sangue para a cabeça, de onde deveria sair a solução para essa tragédia. Os músculos tesos, os vincos da face mais profundos, a voz embargada. Era ele a própria figura do pai que tirava o filho dos escombros de um terremoto, a vida se acabava ali se o filho não sobrevivesse. Enfim, veio o socorro, e a cura meses depois. No calendário da vida, estava marcado: aquele pai sofreria algum tempo depois ao pé do leito daquele mesmo filho, vendo-o despedir-se do mundo, tão jovem.
Transcorria assim a difícil caminhada desse homem, que escolhera viver para os seus, mais do que para si. Sete filhos agora compunham a sua vinha. Tinha-se que adubar, regar, afastar a erva daninha, para colher os bons frutos quando as próprias forças estivessem rareando. O vinho que daí resultasse, sorveria nas bodas de uma velhice feliz, junto com aquela com a qual dividira as emoções de uma vida laboriosa e repleta de bênçãos celestiais. Era aguardar, “Deus pode ser que tarde, mas não falta”.
Na década imediata emigrou a única filha, para sempre. Foi um relâmpago que cortou o seu céu, numa noite tempestuosa. Os olhos não mais verteram lágrimas, apenas se arregalaram, assustados, como a procurar luz no breu da noite. Olharam para os sobreviventes, balbuciando: “Meus filhos, meu tesouro”. O coração sangrara, num bater pungente... A voz embargara e os lábios secos não lhe permitiram pronunciasse qualquer lamento. Para consolo, a meia dúzia de apóstolos seguia fielmente os seus passos, imitando-o, repetindo as suas palavras, os seus ensinamentos, não havia temer o futuro, ali estava a base, o seu sustentáculo, o vinho curtido com amor.
[1] Nessa época ainda se “ouvia” missa, só muito depois é que a Igreja adotou o termo “participar” da missa.
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