sábado, 23 de agosto de 2008

Homenagem póstuma de um filho (XI)

Por: Jurandir Josino Cavalcante

Transferência para o Hospital

Atravessava as noites como os dias, em dores. Tramal, receitara-lhe o geriatra. Foi seu bote salva-vida. Quando as ondas estavam revoltas, agitadas, o perigo de ir ao fundo iminente, lançava mão da pequenita bóia. Acalmava a sua natureza, fechava os olhos, dormia profundo, sonhava na longínqua Portalegre. A Raimunda nervosa porque o irmão dele tinha levado o seu chapéu novo, “que nem tinha sido usado ainda”. Noutro, a sua égua, peada, coitada! Foi atravessar o riacho e morreu afogada. Raimunda não perdoava o cunhado. “Calma, Raimunda, Deus nos dá outra”. Mas o efeito passava e novamente levantava-se a tempestade. O barco estremecia, corria ao remédio.
Piorava. Pior hoje que ontem, que anteontem... amanhã pior. Melhor que o tempo não passasse, retrocedesse. Mas não, Deus não queria, e mergulhava nas profundidades obscuras daquele oceano de memórias, dopado pelo remédio, que as dores exigiam. E o corpo, fragilizado por tantos sofrimentos, foi definhando, foi inviabilizando alguns órgãos, foi limitando a capacidade de resistência daquele que a vida toda soubera fazer frente às intempéries da natureza. Até que, concluiu-se, não dava mais para tê-lo assim, mergulhado nessa cama d’água. (Ironia: ele que tantas secas passara). Pois as crises renais se repetiam, conjuminadas com as dores intensas.
A 16 de janeiro de 1995, o sol já se despencando por trás das sombras do horizonte, papai dava entrada no Hospital das Clínicas. Fez uma “tomografia computadorizada da coluna lombo-sacra”, onde se lê na requisição (sem data), no campo “dados clínicos”, a seguinte informação: “Paciente c/ dores intensas na coluna c/ incidência p/ perna direita necessitando de avaliação mais minuciosa da coluna lombo-sacra”. E, no verso, no quadro “Resumo da história clínica que motivou a solicitação do exame”: “Paciente após subir em árvore apresentou dores intensas na coluna lombar c/ irradiação p/ perna direita acompanhada de alt. sensibilidade”.
Na capa do seu prontuário médico, de número 424.353, foi anotado à mão: “Insuficiência renal aguda”, e, entre parênteses: “Mieloma? Ca de Próstata?”. Deram-lhe o leito 13 de uma pequena enfermaria, enquanto desocupava um outro na UTI.
Quando cheguei para vê-lo, no começo da noite, já estava no balão de oxigênio. Lúcido, mas um pouco assustado.
Perguntei-lhe, baixinho:
- Papai, o Sr. saindo-se bem desta, o que é que pretende fazer da vida?
Olhou para mim, com aquele olhar paternal, sério, e respondeu, sem hesitar:
- Meu filho, saindo-me com vida deste hospital, vou me dedicar mais a Deus, vou trabalhar mais por Sua obra.
Esse seria o prólogo, pois daqui a pouco a tragédia iniciaria o seu curso ligeiro, com um triste epílogo após cinco atos.
O que era “se dedicar mais a Deus, trabalhar mais por Sua obra”? A explicação não a obtive dele, porque me furtei de ir mais longe na entrevista: aquelas palavras me bastavam, pois conhecia a alma de quem as proferia.
O homem profundamente religioso e temente a Deus estava a dizer uma de suas últimas orações, a peticionar e reverenciar aquele ao Qual devia a vida laboriosa, sangrada, mas feliz nos seus meandros, nas suas particularidades, nas suas realizações de bom cristão, na sua busca incansável de amar ao próximo.
Estávamos assim, olhando um para o outro, sem palavras mais para dizer... quando surgiu dois enfermeiros que empurravam uma maca: vinham levá-lo para a UTI. Ajudei-os, acompanhando-o até àquele lugar escuro, àquela espécie de Purgatório.
Purgatório ou Inferno Prefiro pensar que era o Purgatório, onde o meu pai estava sendo metido para purgar, expiar das faltas cometidas. Ali seria o lugar onde ia padecer os maiores sofrimentos de sua vida, quiçá por não ter completado o trabalho que Deus lhe confiara, ou porque merecia alguma pena por falta que ignorávamos. Mas o nosso Pai do Céu reservava-lhe um prêmio, pela paciência e resignação que ia demonstrar (mais este exemplo!), durante aqueles derradeiros dias. Olhando seu corpo, sua face, seu arfar, seu olhar inquiridor, naquele estado de miséria, de indigência, de submissão, de impotência, vinha-me tristeza, angústia, desespero, se misturando a sentimento de separação daquele que mais amava nesta terra, mais desejava singrasse este Vale ileso, forte, sem golpe algum a privar-nos de seu convívio.
Os enfermeiros abriram a porta, de duas bandas, e adentramos a uma sala escura, com um forte odor de medicamentos, silenciosa, lúgubre. Quando paramos a maca, eles pegaram cada qual numa ponta do lençol que suspenderam, transportando-o para uma cama contígua. Nesse momento papai desnorteado inquiria-nos com seu olhar, como quem diz: “O que fazem comigo! Chega de sofrimento!”. Não dei tempo à emoção. Despedi-me, após receber sua bênção.
Beirava oito da noite quando se deu conta de que se achava só naquela velha oficina humana. Os seus apóstolos tinham ido dormir, cansados, de chorar pelo que sabiam, pelo que não sabiam, pelo que não admitiam. E ele, primeira vez soerguia a mão sem encontrar o apoio de outras mãos, os olhos postos num teto que entediava, vultos brancos iam e vinham em passos alterados... - Ah, estou doido, ou é um sonho Terá dito. Não, não terá dito, terá pensado, e outras coisas mais, talvez reminiscências, mastigatório de velho, o mesmo, sobre a Raimunda, sobre os meninos, o Velho Chico, Portalegre. Tirante muita coisa, ali estava qual Jesus no Horto, e, passado o primeiro momento, rezaria ao Pai, que daqui a pouco viriam os algozes e se realizaria o fim de tudo.

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