PLÍNIO CORRÊA DE OLIVEIRA
Recentemente, na
Itália, escândalos sem precedentes fizeram com que o Parlamento votasse uma lei
que extingue as penas de prisão aplicadas a políticos, condenados por receber
contribuições ilegais destinadas a campanhas eleitorais. Ela foi aprovada no Senado
por 139 contra 19, depois de ter sido votada pela Câmara de Deputados em
novembro último. Tal legislação estabelece que contribuições ilegais para
campanhas políticas não constituem crime, tornando-se apenas "ofensa
civil". Dessa forma, os condenados não serão mais presos, devendo tão-só
pagar multas.
"A
votação no Senado foi uma das poucas demonstrações de unidade da Câmara Alta do
Parlamento da Itália" (cfr. "Folha de S. Paulo", 3-12-93).
Comunistas e autonomistas da Liga do Norte juntaram-se aos integrantes dos
partidos envolvidos nos escândalos de corrupção para a aprovação da lei.
"Até hoje, políticos que recebessem contribuições ilegais para campanhas
eleitorais poderiam ser condenados até a quatro anos de cadeia. A maioria dos
políticos italianos acusados nos recentes escândalos de corrupção – entre eles
cinco ex-primeiros-ministros – são suspeitos de terem recebido doações ilegais
para suas campanhas eleitorais.
"Segundo
o Comitê Judiciário do Senado, as contribuições políticas deixam de ser ilegais,
desde que voltadas exclusivamente para o financiamento de campanhas eleitorais.
A nova lei é retroativa se beneficiar os réus" (id. ib.).
É lícito
financiar candidatos?
Em
princípio, pode-se censurar um homem rico, um empresário, que pague uma soma
importante para eleger determinado político, defensor de idéias semelhantes às
suas?
Daria
provas de ser muito sovina um homem que, podendo facilitar, mediante
contribuições financeiras, o acesso a cargo público importante a um candidato
que apresente um programa capaz de salvar o seu país, não o fizesse.
Em tese,
o fato de uma pessoa rica fazer uma doação para a eleição de outra sem posses,
não é, em si, ato desonesto. Pode até ser considerado um ato de virtude.
Acordo
escuso
Ora, a
situação muda de figura quando se observa não ser por afinidade ideológica que
determinado empresário ou banqueiro apoia um candidato, por exemplo, à
Presidência da República. Se ele financia tal político porque houve um acordo,
no sentido de este lhe conceder vantagens na realização de seus negócios,
recebendo em compensação pelo dinheiro doado, um contrato comercial vantajoso,
a combinação torna-se espúria. E isso implica, muitas vezes, que será
contratada para a realização de uma obra pública não a empresa mais eficiente,
mas o empresário que facilitou o candidato a obter o cargo público. Um acordo
desse tipo transforma um ato de idealismo em negociata, e começa assim a
aparecer o lado escuso e espúrio da combinação.
Além
disso, o empresário pode cobrar do Estado um preço muito maior do que cobraria
outro concorrente que não auxiliou a eleição do candidato. Este ato assume,
pois, caráter irrecusavelmente desonesto, porque o empresário cobraria um preço
desproporcional pelo serviço prestado.
Corrupção
e sistema de governo
Consideradas
as coisas em tese, pode-se dizer que este gênero de falseamento da democracia é
optativo. Isto é, se as pessoas que entram nesse jogo o quiserem, podem assumir
a atitude descrita acima, prejudicando singularmente o Estado e os interesses
públicos. Se não o quiserem, contudo, podem agir honestamente. Assim, não se
infere daí um argumento contra a forma de governo, nem contra o sistema
econômico capitalista. Dessa situação extrai-se apenas uma razão contra o
falseamento da forma democrática de governo. Falseamento que pode ocorrer
também em outros tipos de governo.
Do
ut des; facio ut facias
As
considerações precedentes são variações maiores ou menores de um mesmo
pensamento central, que se poderia descrever em torno da máxima do Direito
Romano: Do ut des; facio ut facias (dou para que tu me dês;
faço para que me faças). É uma combinação, um arranjo que pode ser feito de
modo desonesto ou honesto, conforme entendimento das partes engajadas no
negócio.
O
falseamento pode facilmente se dar em qualquer forma de governo vigente no
momento, seja democracia, seja monarquia. E também ocorrer tanto no sistema
econômico capitalista quanto no comunista. Lembremos que no comunismo os
membros do partido – especialmente a cúpula, como a nomenklatura na ex-URSS –
constituem uma casta, que obtém todas as vantagens. Isto que já era sabido,
tornou-se patente após a queda do Muro de Berlim.
Grau
de moralidade pública
O eixo
da problemática não se encontra primordialmente, pois, na forma de governo nem
no sistema econômico. Ele reside no grau de moralidade pública e, em
particular, no comportamento dos homens públicos, numa ou noutra forma de
governo, num ou noutro sistema econômico. Onde há pessoas que tomam a sério a
existência de Deus, e cumprem, de fato, Sua Lei, tais coisas não acontecem.
Mas, em
países onde a população crê na existência de Deus sem seriedade, ou cumpre a
sua Lei também de modo não sério, certo número de pessoas pode roubar,
beneficiando-se de bens que não são seus.
Não
estamos, portanto, em presença de uma questão principalmente econômica, embora
tenha algo de econômico; nem tampouco em face de uma questão principalmente
política, se bem que tenha algo de político. Estamos diante de uma temática
que, apesar de conter reflexos econômicos e políticos, é fundamentalmente
religiosa e moral. Onde não há religião nem moral, onde há aniquilamento do
valor religioso, da Fé, as coisas necessariamente caminham rumo ao esboroamento
completo de toda a ordem econômica, política e social.
E a
repressão ao roubo?
É claro
que se deve reprimir de modo categórico toda espécie de ilegalidade e de
imoralidade. Entretanto, simplesmente punindo os ladrões, nunca se chegará à
eliminação do roubo. Porque o número de ladrões tende a crescer, a bem dizer
indefinidamente, num país em que a maioria esmagadora da população não cumpre
os Dez Mandamentos da Lei de Deus. Caso se prendam cinco ladrões, engana-se
quem considerar que seu número diminuiu em cinco. Foram abertas, na verdade,
cinco vagas, e para elas surgem cinqüenta candidatos, isto é, cinqüenta novos
ladrões. E crescendo o número de ladrões, aumentam os roubos.
O
problema é fundamentalmente moral e, a esse título, envolve também um problema
religioso.
A
ingerência do Estado
As
crescentes restrições impostas à propriedade privada conduzem atualmente a uma
situação em que, para seu exercício pleno, ela depende de autorização do
Estado, segundo a legislação semi-comunista de tantas nações modernas ditas
não-comunistas. Dessa forma, por exemplo, a exploração de alguns bens no
subsolo – que legitimamente pertencem ao proprietário do solo – só pode se dar
com permissão do Estado. Para obtê-la, uma pessoa honesta freqüentemente tem
que oferecer um suborno ao funcionário encarregado da autorização, seja para
consegui-la ou para que não demore indefinidamente. Quem assim procede, agiu
erradamente?
Não. Ele
deu dinheiro para obter um direito que legitimamente já era seu. Mais ainda, é
o Estado que rouba, ao limitar assim o direito de propriedade injustamente. As
irregularidades daí decorrentes criam na máquina política subornos de toda
espécie.
Tal
procedimento se espalha pela população inteira. Quem paga suborno é tido como
pessoa esperta, e quem não o faz, passa por bobo. O esperto ganha dinheiro. O
que não suborna fica com um bem que não lhe adianta de nada. Essa é a
conseqüência forçosa da ingerência desmesurada do Estado na economia.
Oficialização
do roubo
Se até
os honestos são obrigados a subornar, que se dirá dos desonestos? O suborno se
espalha como uma mancha de azeite sobre um tecido, penetrando em toda a sua
contextura.
Em certo
momento, quando o número de ladrões torna-se tão grande que é praticamente
impossível reprimir o crime sem pôr a nação inteira no cárcere, adota-se a fórmula
italiana: declara-se não ser crime o suborno, o qual passa a ser punido apenas
mediante multa. Na verdade, duas multas. Uma para o funcionário, outra para o
Estado. E a pessoa fica livre para fazer o que quiser. É a oficialização do
roubo.
Assim
sendo, um vulgar ladrão de galinhas pode ser punido com prisão. Um político,
porém, que entra numa negociata eleitoral, não fica desmoralizado e não vai
para a prisão. Deve apenas pagar uma multa. E como ele recebe também algum
dinheiro, tudo se arranja. Todos ganham dinheiro, todos roubam e o roubo
torna-se um costume oficial.
Fim
da propriedade privada
Quando
se oficializa dessa maneira o roubo, a propriedade privada acaba deixando de
existir. Se o roubo se generaliza, multiplica-se não apenas a obtenção de
vantagens em negócios públicos, mas todos os negócios tendem a se tornar
velhacaria.
Em tal
situação, o trabalho perde prestígio e influência, restando apenas como meio de
ganhar dinheiro a prática desonesta. O roubo torna-se o rei da sociedade. E o
sistema econômico, comunista ou capitalista, afunda na prática do suborno. O
país torna-se uma "roubolândia", onde uma minoria de ladrões se
locupleta no poder.
A
meta é o caos
Esse
desfazimento da sociedade conduz a uma adulteração da polêmica
comunismo-anticomunismo. Isto é, os comunistas dizem que no regime capitalista
o roubo se generaliza. Entretanto, a situação dos países do Leste europeu
mostra que, no regime comunista, o roubo e o suborno, na realidade, se instalam
de modo generalizado. E as acusações recíprocas de ladrões deixam de ter
sentido. E o mundo mergulha na anarquia e no caos.
Caminha-se
então para uma ordem de coisas em que a discussão capitalismo-comunismo perde
sua razão de ser. Nada é mais nada! Comunismo equivale a capitalismo;
capitalismo é comunismo. Todos tornaram-se ladrões e ninguém deixa de ser
ladrão, exceto alguns poucos que ainda crêem em Deus.
Essa é a
conseqüência da lei recentemente aprovada na Itália. É o primeiro passo para a
generalização de um sistema legal mais ou menos parecido como o descrito acima
e que atingirá, cedo ou tarde, todas as nações do mundo. Aliás, é o que já
ocorreu na França, durante o governo socialista do presidente Mitterrand.
Comprovou-se uma corrupção praticada pelo Partido Socialista, e como este
possuía, na ocasião, maioria na Câmara de Deputados, votou-se uma lei de
auto-anistia. O resultado: perda total da moralidade pública, da compostura
política e caminho rumo ao caos.
Que
remédio há para isto?
O que
falta na sociedade atual são elites. Elites morais, antes de tudo. Mas elites,
por excelência, de famílias, nas quais algo se conserva pela recordação de seus
maiores, célebres por sua honestidade, e que servem de modelo.
Ora, a
democracia, em concreto, arruinou o prestígio das verdadeiras elites. Se não se
trabalhar para sua restauração, nada poderá ser feito.
Com o
intuito de favorecer as classes mais modestas da sociedade contemporânea, foi
sendo dada a esta uma estrutura gradualmente mais igualitária. Daí resultou o
esmagamento progressivo das autênticas elites e o desaparecimento paulatino das
estruturas e dos valores aos quais a sociedade devia até então a gênese de suas
camadas mais cultas e capazes.
A isso
se deve a desorientação e a tendência para o caos, cada vez mais acentuadas nos
dias que correm.
A
experiência brasileira mostra, por exemplo, toda a extensão do perigo e dos
prejuízos a que o minguamento das elites pode conduzir uma nação.
A
única solução de fundo
Poder-se-ia
argumentar: muitos que vêem, a justo título, na falta de religião a raiz de
todo o mal, começariam a praticá-la, o que iria eliminando a corrupção. Na
verdade, porém, muitas pessoas que admitem estar a irreligiosidade na origem de
todo mal, não desejam absolutamente propagar a religião, de maneira a criar um
ambiente de austeridade, de severidade moral. Pois isso as obrigaria a mudar
seu modo de viver.
A
posição assumida por tais pessoas torna-se mais compreensível, se a compararmos
com a atitude de certo tipo de jogadores: não se encontra um único adepto do
jogo ilícito que sustente ser este honesto, bem como trazer ele vantagens para
sua pátria. Assim, embora tal jogo não convenha ao país, convém a ele, enquanto
jogador.
A
graça divina
Para
debelar tal situação é preciso exercer-se um apostolado de caráter
essencialmente religioso, que atraia a graça divina. E, com o auxílio desta, um
apostolado que toque as almas, as inteligências, as vontades realmente, de
maneira a alcançar verdadeiras conversões. E a partir dessas, alguma coisa pode
ser feito. Ora, tais conversões são evidentemente dificílimas de se obter em
épocas de imoralidade generalizada, pois as pessoas estão muito afeiçoadas às
vantagens que esta lhes traz. E, portanto, estarão pouco propensas a abandonar
a má vida.
Apóstolos
autênticos
Para se
descer aos aspectos mais recônditos do problema com vistas à sua plena solução,
é necessária a presença de apóstolos como aqueles recomendados por Dom Chautard
em sua famosa obra "A alma de
todo apostolado". Apóstolos dotados de vida interior
verdadeira, desejosos do Reino de Deus antes de todas as coisas, e da
realização da vontade e dos desígnios divinos, assim na Terra como no Céu.
Apóstolos que arrastem pelo exemplo, e movam pela palavra a população,
elaborando as leis do Estado conforme as de Deus. E, assim, consigam alterar o
procedimento das pessoas. Em suma, surgindo autênticos apóstolos, poderão estes
com sua atuação tocar verdadeiramente as almas, as quais, correspondendo à
graça, converter-se-ão.
E para
se converter, o homem contemporâneo deverá ser dócil à recomendação de Nossa
Senhora de Fátima à humanidade, em 1917, a saber: penitência e oração.
(Transcrito de "Catolicismo" N° 518,
Fevereiro de 1994)
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