terça-feira, 25 de novembro de 2008

Meio século de uma epopéia sertaneja

A palavra "retirante" foi definitivamente inserida no vocabulário nacional como consequência natural das constantes secas do Nordeste: eram assim chamados todos aqueles que fugiam para as grandes cidades em busca de melhores dias de vida.
Na longuínqua década de 40, o casal Batista e Raimunda resolveu empreender uma jornada difícil e arriscada: sair com a pequena família de 3 filhos, do interior do Rio Grande do Norte para a capital do Ceará. Com os recursos modernos de transporte até que a tarefa poderia parecer cômoda, aquirir até mesmo ares de aprazível turismo.
Não o era, porém, naqueles remotos tempos. A lombo de animal ou em veículos precários (ora em uns ora em outros), com pousadas demoradas em lugares inóspitos, carregando, além de seus pertences, dois dos três filhos (um havia ficado com os avós maternos), sendo que um dos que levavam era ainda criança de colo (com dois meses de nascido), a empresa era por demais heróica e sofredora. Mas a fortaleza de nosso sertanejo vence todas essas adversidades com altaneria. E essa fortaleza, como virtude, os levou à outra, a Fortaleza capital do Estado, que os recebeu com um futuro promissor.
E o futuro chegou. Decorridos mais de meio século daquela epopéia (exatos 65 anos!), poderíamos relatar aquela história com o sugestivo título de "Meio século de uma epopéia sertaneja". Pois esse casal foi um exemplo vivo da redenção sócio-econômica das populações retirantes: hoje estão com todos os filhos bem criados, alguns até mesmo com uma situação invejável. D. Raimunda, hoje viúva, herdou uma renda razoável com que vive e uma casa residencial confortável. Pode-se dizer que sua vida é regalada com todos os confortos que estão ao alcance de sua situação financeira, suficiente até para sustentar netos, uma empregada com uma filha e um genro doente.

A Bondade sertaneja (X)

Sofrendo as agruras da vida
“Subi a Deus na ventura e Ele descerá a vós na desgraça”. (Marquês de Maricá).

O Sr. Batista sempre foi um lutador, como se diz. Tentou várias vezes uma atividade comercial que lhe desse condições de criar a família, colocar os filhos para estudar, etc. Falido, reuniu os últimos recursos que tinha de sua primeira mercearia (situada na Av. 15 de Novembro, onde residia desde quando chegou a Fortaleza), aplicou num pequeno terreno e começou a construir uma casa no bairro chamado Bom Futuro. Vendeu parte do terreno vizinho a um sobrinho, mas sua situação ainda era precária. Vendeu tudo novamente, pegou o dinheiro comprou outro terreno em outro bairro, desta vez o Pan-Americano, e lá começou nova casa. Os dias iam se passando, ele ia construindo, fazendo uma parte e outra deixando para depois, até que o dinheiro se acabou por completo.
A situação se tornou caótica, sem dinheiro e sem ter a quem recorrer para resolver seus problemas, pagar o armazém onde comprava fiado, ter o trocado para pegar o ônibus, fazer pequenas compras de casa, etc. Como sempre, D. Raimunda muito compreensiva tentava lhe consolar e ajudar, mas exigia que ele fosse procurar um emprego ou algo com que viver, pois daquela forma não poderia continuar. Os filhos, alguns já adultos, pouco podiam fazer, pois os dois mais velhos estavam casados, tinham suas famílias, e os solteiros estavam desempregados. O restante ainda era formado por garotos e crianças.
Que fazer? O Sr. Batista rezou fervorosamente e pediu ajuda à Sua Mãe a Virgem Santíssima. De olhos cheios de lágrimas, sentido por deixar a família passar privações, saiu de casa certo dia com destino a conseguir alguma coisa. Qualquer coisa lhe servia. De repente, lembrou-se de um amigo. Foi até à casa dele pedir conselho ou ajuda.
Chegando à casa de seu amigo contou-lhe detalhadamente o drama que estava passando, sem emprego, sem comércio, sem dinheiro e com a família esperando dele algo para sobreviver. Emocionado, o amigo deu-lhe um abraço e disse-lhe, encorajando-o: “Mas o que é isto, rapaz? Que desânimo é este? Coragem! Levante a cabeça!”. Se queria ajuda o amigo estava ali para fazer tudo por ele. Mas o que poderia ele fazer? A resposta foi simples e encontrava-se na frente deles. O amigo do Sr. Batista comprava e revendia bolsas para senhoras e outros artigos populares. Na mesma hora ficou acertado que o Sr. Batista iria trabalhar para ele. Mas como, se ele não tinha dinheiro? Não havia necessidade, ele iria vender os produtos e ganharia um percentual sobre as vendas. Quando tivesse o seu próprio capital, faria suas compras e teria o seu estoque.
E assim, o Sr. Batista recomeçou a vida, até que um dia conseguiu, com a ajuda dos filhos, a sua aposentadoria e ficou com uma renda assegurada pelo resto de sua vida.

domingo, 16 de novembro de 2008

A Bondade sertaneja (IX)

Por: Juraci Josino Cavalcante
Uma alma que sempre ansiava crescer, progredir
"Um pai – ainda o mais pobre – tem sempre uma riqueza para deixar ao filho: o exemplo" (Coelho Neto).

Informado sobre a situação reinante nas capitais brasileiras, seja através de alguma leitura ou mesmo pelas pessoas que andavam pelo sertão, animou-se ele em deixar a caatinga e partir com a família para a capital cearense. Nenhuma mentalidade estagnada, acomodada e sem desejos de progressos, tomaria tal iniciativa. Quando o Sr. Batista resolveu arrumar seus pertences, vender alguma coisa, como seu cavalo, e partir com esposa e filhos para a aventura da viagem é porque desejava ir em busca de crescimento, de progresso, de uma realização superior que naqueles ermos não existia. Havia em seu espírito um desejo de perfeição maior.
Este estado de espírito foi uma constante em sua vida. Demorou pouco tempo em seu primeiro emprego quando chegou em Fortaleza. Logo, se estabeleceu com um pequeno comércio autônomo. De início, uma pequena venda. Depois uma mercearia. Aos trancos e barrancos foi crescendo, até que a crise financeira o pegou pelo caminho, com uma família já numerosa e muitos problemas a enfrentar.

A paz de alma que provém da bondade
"...e paz na terra aos homens de boa vontade" (Lc 2, 14)

Um exemplo da prática da bondade. Quando residia em Fortaleza, o Sr. Batista resolveu ampliar seu comércio (que era uma mercearia) instalando na frente um "posto de bicicletas”. Havia comprado algumas bicicletas, veículo muito utilizado em Fortaleza já então, e passou a alugá-las. Certo dia, um garoto alugou uma e atropelou com a mesma uma criança bem defronte à casa dela. O pai da garotinha, bastante irritado, tomou a bicicleta e jogou-a do outro lado de sua cerca, dizendo que não a devolveria. O guri foi chorando contar o que houve ao Sr. Batista, o qual ficou muitíssimo preocupado: teria acontecido algo de grave com a criança? O pai dela lhe devolveria a bicicleta? Deixou esfriar os ânimos e depois resolveu se dirigir à casa da pequena atropelada. Porém, lá não encontrando o pai nervoso, foi a mãe que o recebeu. Primeiro quis ver como estava a menina, mostrando pesar pelo que houve, depois, como a mãe não se opôs, pegou sua bicicleta e foi embora.
Nota-se que o Sr. Batista é um homem decidido, ele vai atrás do que lhe pertence; mas sua preocupação maior é o estado de saúde da criança. Se os pais não lhe devolvessem a bicicleta ele não ficaria tão sentido, contanto que a criança atropelada não estivesse em estado grave.. Estes dois estados de alma predominam nele, mostrando completo equilíbrio, uma verdadeira paz de alma. Aquele anseio de agredir, de fazer violência para readquirir o que era dele não existia, o que ele tinha em mente quando se dirigiu à casa dos pais da criança era argumentar, era oferecer razões que lhe fizessem devolver a bicicleta, ao mesmo tempo que se mostrava muito penalizado com a criança, pois ele tinha muita brandura de alma e pelo seu jeito de falar qualquer um se dobrava.
Com esta disposição ele ia à casa de qualquer um, lá conversava civilizadamente, calmamente, educadamente, dizia o que pensava e muitas das vezes voltava conseguindo o que queria. Certa vez ele fez uma sociedade com um sujeito que se dizia seu amigo. Abriram um açougue. Os “trabalhos” foram divididos: o sócio tomava conta do açougue, comprava e vendia a carne, e o Sr. Batista apenas lhe dava crédito com seu talonário de cheques. Quando o sujeito deixou de cobrir vários cheques, todos devolvidos sem fundos, foi que o Sr. Batista abriu os olhos para o logro em que caíra. A situação era vexatória, pois o “sócio” não tinha dinheiro, nem o Sr. Batista tinha condições imediatas de saldar os cheques que andavam nas mãos de diversas pessoas. Um destes credores era um sujeito conhecido como valentão e era sabido que já havia cometido assassinato. Como enfrentar um sujeito deste tipo? Que fazer? Devia esperar que ele viesse na sua casa ou deveria procurá-lo?
Como dissemos acima, o Sr. Batista era decidido, e por isso resolveu ir até à casa do valentão. Não foi com medo, nem armado, nem pensando em discutir com o sujeito. Procurou apenas se informar antes, pela vizinhança, sobre o homem com quem ia conversar. As informações não eram nada animadoras, todos davam péssimas notícias sobre o temperamento irascível e briguento do indivíduo. O Sr. Batista ainda pensou: se estiver bêbado eu deixo para outro dia. Mas o homem estava sóbrio, pois ele o procurou pela manhã. Chegando lá o homem inicialmente o recebeu muito mal. Mas com um pouco de conversa o valentão muda o tom e com a promessa feita de logo saldar a dívida se acalma e nada acontece. O Sr. Batista volta para casa com a consciência tranqüila. Havia feito um acordo, pedido um prazo, dera sua palavra que alguns dias depois foi cumprida.
Quanto ao caloteiro, o “sócio” que se aproveitou de sua ingenuidade para usar seus cheques e espalhá-los na praça, nunca honrou suas dívidas e sumiu... Nem por isto o Sr. Batista foi a procura da polícia e o denunciou a fim de tentar reaver seu dinheiro. Simplesmente deu-o por perdido e interiormente se conformou com esta lição que a vida lhe dava. É bom que se frise, entretanto, que nem sempre ele agia assim, pois o mais comum era ir a procura do que era seu e lutar para consegui-lo, como é o caso narrado em suas reminiscências em que se utilizou da amizade de um juiz de direito para cobrar um débito.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Ato de Consagração a Jesus Cristo Rei

No próximo dia 23 a Igreja comemora a Festa de Cristo Rei. Aqueles que fizerem a consagração abaixo, naquele dia, receberão especiais indulgências.

Ó dulcíssimo Jesus, Redentor do gênero humano, lançai sobre nós, humildemente prostrados na Vossa presença, o Vosso olhar. Nós somos e queremos ser Vossos. E a fim de podermos viver mais intimamente unidos a Vós, cada um de nós se consagra, espontaneamente, neste dia, ao Vosso Sacratíssimo Coração.
Muitos há que nunca Vos conheceram; muitos, desprezando Vossos mandamentos, Vos renegaram. Benigníssimo Jesus, tende piedade de uns e de outros e trazei-os todos ao Vosso Sagrado Coração.
Senhor, sede Rei não somente dos fiéis que nunca de Vós se afastaram, mas também dos filhos pródigos que Vos abandonaram: fazei que estes retornem quanto antes à casa paterna, para não perecerem de miséria e de fome.
Sede Rei dos que vivem iludidos no erro ou separados de Vós pela discórdia; trazei-os ao porto da verdade e à unidade da fé, a fim de que em breve haja um só rebanho e um só Pastor.
Senhor, conservai incólume a Vossa Igreja e dai-lhe uma liberdade segura e sem peias; concedei ordem e paz a todos os povos; fazei que de um pólo a outro do mundo ressoe uma só voz: louvado seja o Coração divino que nos trouxe a salvação, honra e glória a Ele por todos os séculos. Amém.

(Concede-se indulgência parcial ao fiel cristão que reze piedosamente este ato de consagração do gênero humano a Jesus Cristo Rei. A indulgência será plenária se este ato for realizado publicamente na solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei – PEITENCIARIA APOSTÓLICA, Manual de Indulgências).
(transcrito da revista “Arautos do Evangelho”, n. 83, novembro de 2008, pág. 27)

terça-feira, 11 de novembro de 2008

A Bondade sertaneja (VIII)

Por: Juraci Josino Cavalcante
Que tipo de Bondade praticou o Sr. Batista?
Visto anteriormente o que seja a Bondade, é fácil agora verificar até que ponto o Sr. Batista a praticou, em que grau ele estava quando fez alguma ação ou teve tal ou qual modo de vida. Basta ler o relato de sua vida, suas virtudes e auscultar, embora de longe, seu coração.
Parece-nos que ele tinha uma bondade natural bem marcante, muitas vezes aprimorada pelas graças de Deus. Esta bondade ele a exerceu durante toda sua vida e foi a nota predominante de seu procedimento. Não chegou, no entanto, a atingir graus heróicos. Mas, por pouco que tenha crescido nela, serve-nos de exemplo, de padrão de comportamento, a fim de que nós, seus sucessores ainda vivos, possamos um dia atingir graus cada vez maiores de perfeição.
Seu espírito, seu modo de ser, parecia-se muito com seu pai que “muito humilde, falava pouco e não gostava de discutir”, segundo ele mesmo relata. O Sr. Batista tinha também uma grande admiração por seus pais, afirmando que os dois viviam numa união “perfeita”, pois nunca ouvira discutirem: sua mãe cuidava dos filhos e da casa, ensinava as crianças a rezar, etc, enquanto seu pai cuidava de trabalhar para sustentar a família.
Da mesma forma viveu ele com sua esposa, D. Raimunda. Conta que, já no início do casamento, em 1941, teve que largar toda uma plantação feita numa vazante para ir ver sua esposa que, se encontrando adoentada na casa de seus pais, não podia voltar para onde estava o esposo. Só lhe restou colher o que pôde e o resto deixar para a água cobrir. Quer dizer, o importante era ver como se encontrava sua esposa e lhe dar assistência necessária, a vazante que ficasse e se perdesse pois Deus lhe daria tantas fosse necessárias para continuar trabalhando. De fato, logo as chuvas voltaram e ele teve condições de realizar outras plantações, desta feita junto com sua esposa e filhos.

A busca do conhecimento
“Quem conhece mais ama, e quem mais ama mais recebe” (Santa Catarina de Sena).

Para muitos daqueles que nasceram nos sertões pobres de nosso Nordeste, basta-lhes a vida pequena, miúda e sem progressos em que jazem. Para que se aperfeiçoar em alguma coisa? Para que estudar e ter algum conhecimento? Basta ser o que se era desde o nascimento: pobre, analfabeto, a serviço dos outros e sem maior desenvolvimento pessoal. Esta mentalidade parece ser um pouco contrária à do jovem rico citado no Evangelho, mas não, ela revela uma acomodação com a vida que se leva e sem desejar progressos, e, desta forma, é a mesma mentalidade. Para o Sr. Batista, não lhe satisfazia esta maneira de ver a vida. Era necessário progredir, procurar algo de melhor, crescer em tudo para assim conseguir servir melhor e se tornar mais perfeito. Nascido pobre, procurava uma forma de trabalho que minorasse sua situação; tentando melhorar esta situação, um dos caminhos que buscou logo de imediato foi o estudo.
Sim, o estudo. Com dificuldade, somente aos treze anos de idade, após a morte de sua mãe, começou a ter suas primeiras lições. Por sua conta procurou um professor, chamado Zeca Laurindo, compadre de seu pai, tomando dele as primeiras aulas de ler, escrever e contar. Como seu pai não podia e nem tinha muito interesse nos estudos dos filhos, procurou o Sr. Batista recursos com que pagar as aulas, que eram particulares. Empreitou com um vizinho encoivarar um roçado por sete mil réis, cinco dos quais para pagar suas aulas.
No entanto, durou pouco suas pretensões de estudo. Como não conseguira mais dinheiro, teve que deixar as aulas um mês depois, tendo neste pouco tempo aprendido a ler, escrever e um as quatro operações matemáticas. Continuou então a estudar com seu pai, que sabia muito pouco, mas que não lhe dava sossego pedindo para ensinar.
Persistente, conseguiu no ano seguinte mais um mês de aula com o mesmo professor. Desta vez sua intelectualidade avançou, leu livros até do quarto ano primário e aprendeu além das quatro operações também problemas de juros, pesos e medidas e regra de três simples. Tinha algumas noções de história e geografia, embora continuasse atrasado em português. Sua persistência pelos estudos fez com que conseguisse no outro ano mais alguns dias de aula com uma professora em Mossoró.
Estes estudos básicos foram suficientes para tentar ampliar sua cultura, seu conhecimento. Era preciso ler, mas ler o quê? Jornal não aparecia pelo sertão, e os livros eram muito raros e difíceis. Mas o que enxameava mesmo nas feiras, a literatura vasta e prolífera era dos livretos de cordel. Estes os havia em grande quantidade, e como o Sr. Batista gostava deles! Esta poesia simples, cabocla, primária e tida como tacanha, era a riqueza literária do sertanejo: nela ele encontrava ensinamentos diversos, conhecimentos variados, desde a cultura clássica até ao conhecimento de nossa história e dos personagens políticos do País.
Lendo livros de cordel, o Sr. Batista conseguiu intelectualizar-se da melhor forma possível e assim ampliar seus horizontes, saber de algo distante de onde morava, nomes das capitais, situações dos povos dos outros lugares, etc. E lia com tanto gosto aqueles livretos que, já velho, recordava para seus filhos, netos e bisnetos, aquelas poesias que lhe enchiam de satisfação em seus tempos de mocidade. Sua memória nunca lhe traía e conseguiu decorar grande parte das historietas e das poesias de seu tempo. Lembrava com saudades das histórias de um personagem chamado “Cancão de Fogo”(*) , celebrizado pela literatura de cordel.
Um exemplo que bem mostra a riqueza intelectual dos fazedores de versos do sertão é uma poesia que o Sr. Batista sempre repetia quando maduro, de autor desconhecido, que aprendera em sua juventude:
Eu vi um sagüi de espora
Macaco de realejo
Guariba tocar solfejo
Eu vi nos braços da Aurora:
Eu vi uma caipora
Despenseira de um navio
Sapo cantar desafio
Morcego vender fazenda
Catita fazendo renda
O sol tremendo com frio!

O mote é: Eu vi nos braços da Aurora o sol tremendo com frio! Tudo faz crer que o autor da poesia se baseou em nada menos do que no famoso Bocage, que tem uma poesia com o mesmo mote e reza assim:

Se isto vai de foz em fora,
Também com luz diamantina
Vir raiando a matutina
Eu vi nos braços da Aurora:
Só me resta ver agora
O caranguejo de um rio,
Ver os efeitos do cio,
Cantar modas um macaco,
A lua tomar tabaco,
O sol tremendo com frio!

O Sr. Batista, como bom sertanejo, gostava muito de ditados, especialmente dos ditados nordestinos. A imaginação nordestina é muito rica em sentenças, geralmente bem apropriada para cada caso. Eis alguns exemplos: “a gente nasce nu e não se enterra de chapéu”, “boi sonso é que arromba curral”, brincadeira de homem, cheira a defunto”, “nem o veado perde a vida, nem a onça morre de fome”, “pé de galinha não mata pinto”, etc. Copiou ele certa vez todos aqueles que sempre repetia e que sabia de cor:
Quem trabalha Deus ajuda
Farinha pouca, meu pirão primeiro
Quem não tem bons dentes não quebra nozes
Melhor só que mal acompanhado
Quem se vexa, come cru
Quem espera sempre alcança
Quem muito escolhe no pior se apega
Quem quebra galho é macaco gordo
Se faz de santo para melhor passar
Quem economiza tem
Quem guarda tostão junta milhão
Quem guarda com fome o gato come
Quem quiser ser grande nasça viçoso
Quem é bom já nasce feito
Quem tem fé não morre pagão
O galo canta onde aí janta
Quem olha a casa do vizinho se esquece da sua
Quem novo não morre de velho não escapa
Quem não pode com o pote não pega na rodilha
Não pede esmola porque não tem um saco...
Quem corre cansa, quem anda alcança
Quem muito quer muito perde
Quem planta vento colhe tempestade
Quem tem rabo de palha não brinca com fogo
Dois bicudos não se beijam
Quem fala a verdade merece ser perdoado
Quem não tem padrinho morre pagão
Quem se faz de mel as abelhas vêm e comem
Quem dar o que tem a pedir vem
Entre espinhos nascem flores
Cobra que não anda não engole sapo

Nas brincadeiras, o Sr. Batista era mestre. Mas eram sempre brincadeiras de bom espírito e sem maldades. Parodiava estes ditados, em tom de brincadeira, dizendo:
Os últimos serão... os reprovados
Quem ri por último é... retardado
Quem com ferro fere... ganha a briga
Quem dá aos pobres, empresta... adeus
Depois da tempestade... vem o prejuízo
Em terra de cego, quem tem um olho... é caolho

Com sua aposentadoria, o Sr. Batista dispôs de mais tempo para compor poesias, quase todas elas inseridas nesta obra. Quando o “muro da vergonha” em Berlim caiu, no ano de 1989, mandou ele a seguinte estrofe para um filho:
Conforme alguns analistas,
Que fazem estudo profundo,
Desmorona em todo mundo
O regime comunista:
E como já estava previsto
Na história mundial,
E como doutrina do Mal
Que nenhum cristão queria,
E como já tudo previa
Está chegando ao final.

Iniciava-se o ano de 1995, poucos dias faltavam para seu falecimento. Em seu leito de dor, recebia em casa os familiares distantes que o visitavam. Dia 03 de janeiro, ele chama sua neta, Carla, e dita para ela os seguintes versos que havia escrito numa folha de um caderno em sua homenagem já há algum tempo:

Minha netinha formosa
Ventura dos dias meus
És linda como uma rosa
Do belo jardim dos céus

O brilho do teu olhar
Tem tanto, tanto carinho
E o teu doce falar
É o canto do passarinho

Este riso que me prende
Tem meiguice, tem candor
Ai! Como teu riso acende
Na face belo rubor

Como o teu riso alerta
Um calor no peito meu
Como minh’alma desperta
Do corpo que já morreu

Como é bom ouvir segredos
Te afagando como desvelo
Deixar correr os meus dedos
No ouro dos teus cabelos

Tu és um anjo, querida
Um anjo banhado em luz
Que brilha na minha vida
E me suaviza a cruz

Quando fechar os meus olhos
Pra nunca mais ver os teus
Me guie por entre abrolhos
Até pertinho de Deus

Junto ao trono do Senhor
Te lembrarei com saudade
E rezarei com amor
Por tua felicidade!

Um de seus filhos acredita que esta poesia não é de autoria do Sr. Batista, tal o grau de perfeição que há nela. Não discordamos que ele possa tê-la lido alhures e decorado, mas o fato é que com sua letra a copiou em seu caderno e assim a ofereceu à sua neta. Poucos dias antes (12.11.94) mandara a seguinte poesia para um filho em homenagem a um neto prestas a nascer: Esta, indiscutivelmente, de sua autoria:

“Historinha de Kaio Lincoln quando nasceu”
Longos meses eu passei
Num apartamento sozinho
Não chorei, nem falei
Num cantinho, quetinho

Tudo era silêncio
Como se pode imaginar
Não tinha nenhuma convivência
Naquela sala de estar

Em tudo Deus impõe
Durante o dia a dia
No seio me guardava mamãe
Mas seu rosto eu não conhecia

Eu era bem cuidado
Com amor e com carinho
Nada me faltava
Naquele bendito ninho

Afinal chegou a hora
De uma feliz noitjnha
De conhecer agora
O papai e a mãezinha
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(*) Canção de Fogo era um menino conhecido por suas travessuras e esperteza. Um dia, ao sair em busca de dinheiro para comprar comida à sua mãe, consegue-o depois de enganar um velho que se dirige a um quartel pensando ser um hotel. A mãe recebe a comida, mas pragueja o caráter do filho, que parte. Longe, ele é perseguido pelo tio que se compactua com o velho enganado, para que este o traga preso com precatória assinada pelo delegado. A perseguição é vã diante da astúcia de Canção. As travessuras então se multiplicam quando ele conhece e acolhe o menino Alfredo que, triste e desamparado, passa a acompanhá-lo e auxiliá-lo nas trapaças. Esquivando-se constantemente da polícia, os dois simulam deficiências física e visual e, com a rica bengala de um delegado e, um atestado e uma coroa cedidos por um pastor também enganado, passam a ganhar dinheiro às custas de boas esmolas. Durante sua trajetória, Cancão nunca deixa de enviar dinheiro à mãe.

Em terra de cegos, quem tem um olho é rei.

Agradecemos a correção fraterna mandada por nosso irmão Jurandir. Numa postagem anterior, falando dos ditados nordestinos, citamos aquele que consta no título desta postagem. Na ocasião, observamos que tal expressão foi tirada de uma frase de Erasmo de Rotterdam, referindo-se a Camões, e em tom depreciativo para a cultura portuguesa. Na realidade, não procede a observação, tirada de um compêndio de ditados universais. Vejamos o que nos transmite o Jurandir:
→ Camões, de acordo com a obra clássica "A Vida de Camões", escrita por Manuel Severim de Faria, nasceu em 1524 e morreu no ano de 1579, com 55 anos de idade. Camões perdeu a vista em 1550, numa batalha contra os mouros, na cidade de Ceuta.
→ Erasmo de Rotterdam nasceu em 1467 e morreu em 1536, de acordo com o Diccionario de filósofos, do Centro de Estúdios Filosóficos de Gallarate, de Madrid.PORTANTO: Quando Camões perdeu a vista, Erasmo de Rotterdam já tinha ido dar contas a Deus de sua cegueira filosófica. O Site Expressio
dá como expressão francesa que remonta ao século XVI, mas que bem antes já existia o provérbio latino "Beati monoculi in terra caecorum".
Pedimos desculpas pelo equívoco, aqui corrigido.